Piso histórico soterrado vira mistério no Palácio do Catete, no Rio
Crianças uniformizadas de azul se sentam na grama com pranchetas debaixo de enormes palmeiras. Com a orientação de uma professora, elas desenham o cenário: um jardim tropical de um palácio, com lagos, chafariz e um enorme coreto.
Idosos caminham e casais passeiam de mãos dadas no parque. A poucos metros dali, outros desenhos intrigam uma arqueóloga, uma museóloga e uma arquiteta: ladrilhos hidráulicos com mais de 150 anos, pintados à mão na Inglaterra pelo mais nobre fabricante de pisos vitorianos emergiram de um buraco cavado para a passagem de tubulações de esgoto.
Não há registro desses ladrilhos em nenhuma planta daquele palácio, mesmo que ele já tenha sido o centro do poder no Brasil, como a sede da Presidência da República e residência oficial de presidentes por mais de meio século.
"Tem muita camada de história nesse lugar", disse a museóloga Isabel Portella, figurativamente. "Um período vai suplantando um outro, e, além de a gente ter a história que aconteceu aqui dentro, abaixo também tem muita história. Camadas de história para cima, e outras camadas históricas para baixo".
Sonho de JK
Isabel é servidora do Museu da República, criado no Palácio do Catete depois que a capital do Brasil foi transferida do Rio de Janeiro para Brasília em 1960. Enquanto planejava a mudança, era nesse palácio que o ex-presidente Juscelino Kubitschek (JK) sonhava com a capital do futuro.
Antes disso, Getúlio Vargas morou e governou o país do palácio durante seu governo e também terminou nele sua vida, ao se suicidar no dia 24 de agosto de 1954, aos 72 anos. Também foi desse palácio que Venceslau Brás declarou guerra à Alemanha em 1917, já no fim da Primeira Guerra Mundial, depois que a Marinha Imperial Alemã afundou navios mercantes brasileiros.
Diante de tanta história documentada, nenhum registro dá qualquer pista de qual possa ser a origem dos ladrilhos hidráulicos encontrados um dia antes do carnaval de 2023, no dia 16 de fevereiro. Isabel Portella é especialista no assunto, tendo mapeado todas as 47 padronagens de ladrilhos que existem no Palácio do Catete. Ela pode garantir que a descoberta tem a mesma qualidade que os pisos usados no hall de entrada e em outras áreas do museu, importados da Inglaterra na época da construção, entre 1858 e 1867.
Chefe do núcleo de arquitetura e diretora substituta do Museu da República, Ana Cecilia Lima Santana contou que a presença de descobertas arqueológicas nos subterrâneos do Museu da República na verdade não é tão surpreendente. Mas algo da dimensão do que foi achado dessa vez deixou todos os especialistas da casa sem respostas.
Escavações
"A gente sabe que, nos jardins do palácio, a gente pode encontrar qualquer coisa nas escavações. Por isso, sempre tem que ter um arqueólogo junto em qualquer interferência que se faça, para qualquer mínima passagem de tubulação. É um jardim histórico que passou por muitas modificações. A gente só não imaginou que ia encontrar algo desse tamanho", afirmou.
"A gente não tem nenhum relato do que pode ter sido isso. As plantas mais antigas que não mostram nada construído aqui. Os documentos mais antigos não mostram nada nessa área", acrescentou.
As escavações feitas no jardim para a passagem das novas tubulações de esgoto já haviam se deparado com pedaços de louça, vidro e cerâmicas, mas todos minúsculos, contou a arqueóloga Beth Modesti Simões, que foi quem encontrou o ladrilho cavando com uma picareta.
"Percebi que tinha alguma coisa e disse: espera aí, vamos devagar", lembrou ela. "Quando achei esse ladrilho, reparei a qualidade. Ele tem as iniciais do fabricante, então, não temos dúvidas que é Minton. Esse fabricante era renomadíssimo, ele fez um restauro na Catedral de Westminster [no Reino Unido]", disse Beth.
A catedral em questão é famosa pelos casamentos, coroações e funerais da família real britânica. Beth agora trabalha na confirmação do que foi encontrado, escavando mais para descobrir qual é a dimensão real da área ladrilhada, já que apenas pouco mais de um metro já foi revelado. Depois que toda a área for aberta, ainda faltará a resposta sobre qual estrutura havia recebido um ladrilho tão nobre no meio do jardim.
"É um trabalho de arqueologia histórica, em que você cruza os artefatos que você encontrou, a cultura material dessa época, com os documentos que você descobre em arquivos e plantas", detalhou ela, que trabalha no Instituto de Arqueologia do Brasil, acompanhada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
As três pesquisadoras têm suas próprias especulações. Elas vão desde testes feitos para mostrar as padronagens ao antigo dono do casarão até a possibilidade de um pórtico, com uma entrada alternativa para o jardim, que já foi ampliado diversas vezes. Há ainda relatos pouco esclarecedores de que pode ter havido ali uma casa construída para a sogra do Barão de Nova Friburgo, o responsável por construir aquele palácio luxuoso com um jardim que terminava na areia da praia.
Nobreza escravocrata
Mas como um casarão tão suntuoso a ponto de ser um palácio presidencial foi construído para ser a residência de uma família nobre no século 19? Entre ladrilhos hidráulicos ingleses, vitrais alemães e colunas de mármore, o luxo e o requinte da residência exemplificam o poder econômico da elite cafeicultora e escravista, da qual o Barão de Nova Friburgo, Antônio Clemente Pinto, era um destacado representante.