Instituições financeiras quebram promessas na crise do clima, diz diretora de ONG

Por CRISTIANE FONTE E MARCELO LEITE

OXFORD, INGLATERRA E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Lucie Pinson é diretora-executiva da Reclaim Finance, ONG com sede na França afiliada à Friends of the Earth (Amigos da Terra). Na Friends of the Earth, ela começou a se concentrar na responsabilização de instituições financeiras, em particular bancos, pelas mudanças climáticas e pela injustiça social.

Ela busca fazer essa vigilância, no entanto, de maneira colaborativa, apontando com dados técnicos como o objetivo declarado de descarbonização dos investimentos termina descumprido, na prática, e como isso pode afetar a reputação dos bancos -para melhor, se atuarem de maneira consequente.

"Nossa atitude é muito prescritiva. Nós sabemos exatamente que tipo de medidas queremos que os bancos adotem para gerar um impacto real nas principais cadeias de valor do mundo real, de forma a realmente deixar de apoiar a expansão do setor [de combustíveis fósseis] e impulsionar sua eliminação gradual."

Um dos problemas, segundo Pinson, são os financiamentos de curto prazo para projetos energéticos baseados em combustíveis fósseis que permanecerão em atividade por duas, três ou até quatro décadas. No entanto, como são quitados no prazo de três ou cinco anos, passam como um cometa pelo portfólio do banco, sem deixar rastro nos relatórios de sustentabilidade.

Os bancos centrais, na sua opinião, têm um papel a cumprir. Mais dia, menos dia, eles terão de assimilar em suas normas preventivas a realidade de que a inflação também tem raízes na dependência das economias nacionais em relação aos poluentes do clima, como petróleo, carvão mineral e gás natural.

Para isso, entretanto, as autoridades monetárias precisariam abandonar o modelo americano de regulação, que só toma em conta os riscos financeiros de investimentos em setores mais e mais insustentáveis em face da emergência climática.

"Os bancos centrais consideram que seu papel é manter uma abordagem neutra em relação à economia, de modo a apoiar todos os setores da mesma forma", afirma. "No entanto, sabemos que uma abordagem neutra, por definição, apoia o status quo, ou seja, beneficia as grandes empresas de combustíveis fósseis e, assim, piora a situação."

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PERGUNTA - Em 2020, a senhora recebeu o Prêmio Goldman por esforços para interromper o fluxo de financiamento à indústria do carvão. Como descreveria a situação da indústria no momento, considerando o aumento do consumona Europa, particularmente em países como a Alemanha, em decorrência da Guerra da Ucrânia?

LUCIE PINSON - Observamos um ressurgimento do carvão. Ainda é difícil tirar grandes conclusões, pois se passaram poucos meses. Não é possível dizer se esse aumento veio para ficar, ou se é algo que não reverterá a tendência geral.

Não acreditamos que as instituições financeiras decidam retroceder e reverter seus compromissos anteriores, ou seja, uma quantidade significativa delas ainda está comprometida em não apoiar a construção de novos projetos de carvão.

O que realmente importa é até que ponto a infraestrutura de carvão atual continuará a ser usada. Ela será usada em grande escala, como vimos no ano passado, ou vamos organizar fechamentos nos próximos anos para buscar um alinhamento à meta de 1,5°C [de aquecimento do planeta, objetivo do Acordo de Paris]?

P - Como funciona a abordagem singular da Reclaim Finance, que permite construir relacionamentos com instituições-chave e, ao mesmo tempo, responsabilizá-las publicamente, conforme descreveu a equipe do Prêmio Goldman?

LP - Ao contrário do que fazem algumas ONGs, a Reclaim Finance parabeniza as instituições financeiras que estão fazendo a coisa certa, ou algo positivo. Nós também buscamos trabalhar com elas porque não queremos apenas que adotem uma política sobre o carvão. Queremos políticas com critérios específicos.

Atuamos em conjunto com alguns parceiros, em particular uma ONG alemã que construiu um banco de dados de empresas mundiais que atuam no setor de carvão. A partir desse banco de dados, que inclui pouco mais de mil empresas, podemos identificar quais são os critérios-chave.

Não se trata apenas de saber se as empresas operam no setor de carvão. O fundamental é saber se a empresa está construindo ou planejando construir novas usinas de carvão. Esse tipo de critério não é usado por instituições financeiras, porque elas têm obtido seus dados de provedores privados que não consideram critérios futuros. Logo, conversar com as instituições financeiras, explicar a realidade do setor e divulgar os dados são elementos importantes de nosso trabalho.

Em segundo lugar, antes de pensar em punir, podemos considerar uma abordagem de recompensas, conversando e tentando mostrar às instituições financeiras que suas ações podem beneficiar sua imagem e reputação.

P - Um relatório da Reclaim Finance revela que, apesar das promessas na Aliança Financeira de Glasgow para o Zero Líquido, que nasceu na COP26, os bancos ainda estão investindo pesadamente em combustíveis fósseis. Quais os principais achados desse estudo?

LP - As instituições financeiras que fazem parte da aliança comprometeram-se a alinhar suas carteiras de financiamento à meta de 1,5°C e a zerar suas emissões líquidas (net zero) até 2050. Procuramos identificar até que ponto os compromissos estão sendo cumpridos com ações concretas, em particular ações voltadas a eliminar serviços financeiros que viabilizem a expansão dos combustíveis fósseis.

Analisamos as transações do setor de energia para descobrir se, após se unir à GFANZ [sigla da aliança, em inglês], determinada instituição financeira ainda estava realizando negócios com alguns dos maiores responsáveis pela expansão do setor de petróleo, carvão e gás em todo o mundo.

Infelizmente, descobrimos que 56 dos principais membros da aliança forneceram US$ 270 bilhões à expansão de combustíveis fósseis, com nada menos que 134 empréstimos e mais de 200 transações. Parece que, com muita regularidade, as instituições financeiras estão quebrando suas próprias promessas relativas ao clima.

Outro problema com as metas de descarbonização, como as adotadas por bancos como o BNP, é que, muitas vezes, elas são definidas para 2030. Quando um empréstimo é fornecido a uma empresa, é de curto prazo, algo que será pago no período de três a cinco anos.

Portanto, mesmo se um banco fornecer financiamento a uma empresa que esteja ativamente desenvolvendo novos projetos de petróleo, gás e carvão, aquele banco ainda pode permanecer no caminho certo para atingir suas metas. O empréstimo desaparecerá de sua carteira quando a meta for atingida em 2030.

P - Setenta e cinco por cento dos investimentos ainda são direcionados ao setor de petróleo e gás. Considerando a meta de 1,5°C, há tempo suficiente para o setor financeiro e a sociedade reverterem o curso e se ajustarem a uma transição rumo a energias limpas?

LP - Primeiro de tudo, a meta de 1,5°C representa um grande desafio, mas não está fora de nosso alcance. No entanto, estaremos fadados ao fracasso se os bancos e instituições financeiras não revisarem muito rapidamente suas políticas de empréstimos, subscrições e investimentos.

Precisamos ampliar consideravelmente os investimentos em energias renováveis e, de forma mais ampla, em soluções. As energias renováveis e a eficiência energética da rede exigem muito investimento: precisamos multiplicar por mais de três vezes esse investimento até 2030.

Contudo, o dinheiro simplesmente não está sendo direcionado ao lugar certo. Ele está indo principalmente para combustíveis fósseis e para os bolsos dos acionistas.

P - A senhora disse recentemente que as políticas de desinvestimento dos bancos centrais são ineficientes. Por quê?

LP - Os bancos centrais se concentram principalmente em seu mandato primário, que é o de monitorar a inflação. Todavia, eles não têm considerado quais são as causas profundas da inflação. Talvez isso esteja mudando, principalmente na Europa. O BCE fez recentemente uma declaração muito importante, na qual reconhecia que a inflação tem suas raízes nas mudanças climáticas e em nossa dependência dos combustíveis fósseis, especialmente o gás.

Portanto, se compreendermos isso, sabendo que o principal mandato dos bancos centrais é responder à inflação e monitorá-la, eles devem, nesse caso, se concentrar nas mudanças climáticas e na dependência de combustíveis fósseis. A grande questão é como farão isso.

P - Algumas pessoas dizem que faltam competências no setor financeiro para lidar com o desenvolvimento de uma economia de baixo carbono e que ainda não há produtos financeiros disponíveis para uma agenda positiva. O que pensa sobre isso?

LP - Depende muito das jurisdições e dos diversos produtos financeiros e de poupança que estão sendo colocados no mercado. No entanto, na maioria dos países, temos uma situação em que produtos verdes são comercializados e rotulados erroneamente, sem dizer metade da verdade sobre aonde vai nosso investimento.

Na França, 17% de todos os investimentos sustentáveis integram a TotalEnergies, e 94% dos fundos rotulados como sustentáveis investem em combustíveis fósseis, empresas de armamentos, ou empresas associadas a violações de direitos humanos. Então eles estão muito longe de serem 100% sustentáveis, mas infelizmente os investidores não sabem disso.

P - Como reformar o setor financeiro em países em desenvolvimento, como o Brasil, para lidar com a emergência climática?

LP - Não conheço bem as instituições financeiras brasileiras. Diria que, antes mesmo de abordar bancos e investidores privados, que em certos casos são subsidiárias de grupos maiores sediados na Europa como algumas instituições financeiras espanholas que operam no Brasil, uma coisa muito importante seria analisar o marco regulatório e entender o que faz o Banco Central. Acredito que essas instituições têm mais capacidade de gerar um impacto mais amplo.

Eu diria também que estudar o que está sendo feito na Europa seria a decisão certa, evitando normas e padrões que sejam influenciados pelos EUA. Na União Europeia, consideramos cada vez mais a abordagem de dupla materialidade e tentamos introduzi-la na regulamentação, garantindo, assim, que as instituições financeiras não apenas tentem se proteger dos riscos financeiros relacionados às mudanças climáticas, mas também mitiguem seus próprios impactos no clima e nas comunidades.

Enquanto operarmos por meio de uma única abordagem de materialidade, como os EUA estão fazendo, considerando apenas os riscos financeiros, estamos fadados ao fracasso na transição.

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RAIO-X

Lucie Pinson, 37

Nascida em Nantes, na França, fundou e dirige a ONG Reclaim Finance. Antes trabalhou na ONG Friends of the Earth. É formada em ciências políticas pela Universidade Sorbonne. Foi vencedora do Prêmio Goldman, dedicado a ativistas ambientais, em 2020.