Documentos relacionam mortes de crianças indígenas a dragas de garimpo
MANAUS, AM (FOLHAPRESS) - Documentos da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) e da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) apontam mortes de crianças kanamaris com menos de um ano de idade por diarreia aguda e desidratação severa, em decorrência da atuação de dragas de garimpo numa das regiões mais preservadas da Amazônia.
Ofícios citam o agravamento de saúde, pela mesma causa, de outras crianças com menos de cinco anos e a morte de adultos katukinas, também por diarreia.
O caso ocorreu na região do médio rio Juruá e rio Jutaí, no Amazonas. Os kanamaris vivem na aldeia Igarapé Preto, um território não demarcado. Os katukinas estão na Terra Indígena Rio Biá, demarcada desde 1997, na região das cidades de Carauari e Jutaí.
Segundo os órgãos do governo federal, os óbitos estão associados ao garimpo ilegal de ouro e ao lançamento de mercúrio, resíduos sólidos e outros materiais pesados no rio usado pelos indígenas para as atividades cotidianas.
As mortes de duas crianças e o adoecimento de outras, numa possível relação com o garimpo feito por dragas, ocorreram no início do governo Jair Bolsonaro (PL), em 2019.
Em 2020, o MPF (Ministério Público Federal) e a PF (Polícia Federal) no Amazonas instauraram procedimentos para investigar os fatos. As apurações seguem em curso.
A Procuradoria fez diligências e cobrou ações de órgãos do governo federal para retirada das dragas, tendo encontrado resistência por parte do Exército. A PF afirmou que o processo é sigiloso e não deu informações sobre o andamento do inquérito.
O Ministério da Saúde no governo Lula (PT) disse, em nota, que "considera grave a situação legada pela gestão anterior à saúde indígena". "A Sesai apura com a coordenação do Dsei [Distrito Sanitário Especial Indígena] local os fatos mencionados na denúncia."
O Dsei Médio Rio Solimões e Afluentes é o responsável pela assistência em saúde na região. Partiu desse distrito as primeiras informações sobre os óbitos e adoecimentos de crianças kanamaris.
A Sesai, vinculada ao Ministério da Saúde, disse ter enviado três profissionais do Mais Médicos ao Dsei Médio Rio Solimões para reforçar o atendimento aos indígenas da região.
A existência de ofícios que documentam a ocorrência de mortes de indígenas em região preservada da Amazônia, e que relacionam os óbitos ao garimpo ilegal, mostra que a realidade vivida pelos yanomamis no governo Bolsonaro não foi um fato isolado.
O avanço do garimpo ilegal na maior terra indígena do Brasil, aceito e estimulado pela gestão passada, levou a uma crise humanitária, sanitária e de saúde no território, com mortes de yanomamis por malária e doenças associadas à fome -desnutrição grave, diarreia aguda, pneumonia e infecções respiratórias.
Em 20 de janeiro, o governo Lula declarou estado de emergência em saúde no território. Em fevereiro, a PF, o Ibama, as Forças Armadas e a Força Nacional de Segurança Pública deram início à Operação Libertação, para tentativa de retirada de mais de 20 mil invasores da terra indígena.
A PF abriu um inquérito para investigar o crime de genocídio contra os yanomamis. Estão no alvo da investigação garimpeiros, operadores da logística do garimpo, gestores de saúde indígena e agentes políticos.
O garimpo ilegal na terra yanomami é praticado principalmente por escavação na beira de rios, com o uso de maquinários pesados e com abastecimento logístico por meio de centenas de voos clandestinos. Na região do médio Juruá, a lógica é outra. A exploração de ouro é por dragas, que conseguem atuar na vastidão amazônica sem serem incomodadas por fiscalização ambiental.
Segundo informação da Funai repassada ao MPF ainda em 2018, a região onde está a Terra Indígena Rio Biá tinha mais de cem dragas operando no garimpo ilegal.
Duas dessas balsas, "com uma equipe significativa", faziam exploração ilegal de ouro nas margens do rio Biá, perto da aldeia Igarapé Preto, segundo ofício do Dsei Médio Solimões à Funai em 2019 --o documento foi anexado às investigações de MPF e PF.
O ofício cita consequências à saúde dos indígenas com o lançamento de mercúrio e outros metais pesados no rio. Em fevereiro de 2019, duas crianças kanamaris com menos de um ano morreram após um quadro de diarreia e desidratação.
"O quantitativo de agravos continua aumentando, principalmente com relação às crianças menores de cinco anos", diz o documento. "Muitas remoções estão sendo realizadas com o objetivo de minimizar as enfermidades provavelmente de origem dessas atividades."
A área de saúde indígena apontou ainda a existência de ameaças de garimpeiros para que os indígenas deixassem suas comunidades. E pediu uma ação urgente para retirada das dragas da região.
Em julho de 2020, o MPF enviou um ofício ao Exército em Tefé (AM), onde fica a 16ª Brigada de Infantaria de Selva, e pediu um monitoramento da calha do rio Biá, perto da aldeia Igarapé Preto, para identificação das dragas presentes. O Exército deveria fazer um sobrevoo e fornecer a real localização das balsas de garimpo ilegal, conforme o pedido dos procuradores.
A resposta dada, no mesmo mês, foi de que a brigada não tinha aviões disponíveis para fazer essa fiscalização, mas somente barcos. "O município de Jutaí está afastado a, aproximadamente, 500 km da cidade de Tefé. Uma operação naquela região leva em média 14 dias de deslocamento, utilizando-se os meios fluviais", disse o Exército ao MPF.
O Ibama também foi cobrado. O órgão disse que as equipes de agentes estavam atuando com as Forças Armadas numa GLO (garantia da lei e da ordem), decretada pelo governo Bolsonaro para intervenção na Amazônia, e que a fiscalização na calha do rio Biá seria incluída no rol de ações da chamada Operação Verde Brasil 2. "Será atendida no mais curto prazo possível."
Antes, a Funai já havia relatado à Procuradoria da República em Tabatinga (AM) uma desconfiança dos indígenas da região com a atuação dos militares no combate às dragas de garimpo ilegal. Segundo o relato feito, houve conivência com a atuação dos garimpeiros.
Conforme a Funai, indígenas katukinas morreram de diarreia em 2018, após a pesca na piracema de sardinha. A incidência da doença esteve associada ao garimpo, segundo o órgão. Os dados de óbitos nem chegaram a ser computados pelo Dsei, "por não se fazerem presentes como deveriam".