Cruzamento de espécies distintas gerou linhagem híbrida de lobos-marinhos
SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) - Um namoro improvável entre membros de duas espécies distintas de lobos-marinhos na costa do Peru acabou dando origem a uma terceira espécie, que carrega o DNA de ambas as linhagens ancestrais.
O fenômeno, que por enquanto parece ser único entre mamíferos como nós, foi desvendado por uma equipe internacional de cientistas, cujos líderes são brasileiros da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul). Num estudo que acaba de sair na revista especializada Science Advances, eles estimam que os lobos-marinhos híbridos do Peru iniciaram sua trajetória evolutiva independente há cerca de 400 mil anos, na Era do Gelo.
"Ainda não temos como estimar o número exato de cruzamentos, mas tudo indica que foram poucos indivíduos num evento fortuito, uma situação bastante rara", explica o geneticista Sandro Bonatto, um dos autores principais da pesquisa ao lado de seu colega Fernando Lopes, ambos ligados à instituição gaúcha.
Os livros didáticos do ensino fundamental e médio costumam ensinar que uma espécie é caracterizada pelo fato de que seus membros só são capazes de gerar descendentes férteis com parceiros da mesma espécie. No entanto, a situação real é bem mais complexa. Plantas e animais que pertencem a espécies de parentesco relativamente próximo entre si podem acabar gerando híbridos férteis, embora, em geral, vivam em ambientes distintos e tenham características bem diferentes.
No entanto, o mais comum é que esses casos de hibridação levem apenas à incorporação de alguns trechos do DNA de uma espécie no genoma da outra. É o que aconteceu quando alguns seres humanos de anatomia moderna se uniram a humanos arcaicos, como os neandertais, no fim da Era do Gelo, por exemplo.
A situação flagrada pelos pesquisadores da PUC-RS é bem mais intrigante e rara. Bonatto lembra que já havia indícios morfológicos e comportamentais para considerar que os lobos-marinhos peruanos (e seus vizinhos do norte do Chile) eram diferentes de sua parentela.
Além disso, eles estão separados dos demais lobos-marinhos sul-americanos por cerca de 2.000 km de costa do oceano Pacífico. No resto do continente, numa faixa mais ou menos contínua que vai do extremo sul do litoral gaúcho até o sul do Chile, há outra população desses mamíferos marinhos.
Até agora, todos esses animais sul-americanos eram considerados membros da mesma espécie, a Arctocephalus australis. Há parentes mais distantes deles em lugares como a Nova Zelândia e a Austrália (os A. forsteri), bem como nas ilhas Galápagos, perto do Equador (os A. galapagoensis).
Ao investigar detalhadamente o genoma das várias populações de lobos-marinhos sul-americanos, comparando-o com o de parentes em outros lugares do mundo, a equipe percebeu que o DNA dos bichos peruanos tinha características curiosas. Enquanto os lobos-marinhos das Galápagos e os da população do sul (bichos gaúchos, uruguaios, argentinos etc.) formavam dois grupos claramente separados, os mamíferos marinhos do Peru ficavam "no meio do caminho" em termos genéticos.
Mas esse caráter intermediário claramente vinha de muito tempo, porque a aparente mistura de DNA das Galápagos e da população do sul nos bichos peruanos era bastante homogênea e distribuída pelas diferentes regiões do genoma. Se tivesse acontecido recentemente, seria de esperar que diferentes animais carregassem proporções diversas do DNA de cada espécie --alguns com 75% e 25%, outros com 20% e 80%, e assim por diante. Em vez disso, o cenário mais provável é que a mistura seja homogênea e em torno de 50% de contribuição de cada espécie, afirma Bonatto.
Ou seja, houve tempo suficiente para que, em relativo isolamento, a população peruana de lobos-marinhos chegasse a um estado único de mistura completa entre as duas populações "parentais", como dizem os cientistas --segundo os cálculos da equipe, o processo se deu por volta de 400 mil anos atrás. O mais provável é que eventos como condições climáticas extremas tenham arrastado alguns lobos-marinhos do sul e outros das Galápagos para a costa peruana, e aí o cruzamento entre esses indivíduos aconteceu.
Larissa Oliveira, outra autora do estudo, está preparando uma descrição formal da nova espécie, que vai lhe conferir um nome científico próprio. Enquanto isso, as análises genômicas prosseguem. Muitos detalhes do processo de hibridação ainda não estão claros, e há ainda indícios de que, com as mudanças climáticas, novos indivíduos das Galápagos estão vindo até ilhas mais distantes da costa peruana.
"Como eles estão mais adaptados a águas quentes, perto do Equador, esse movimento pode estar ligado ao aquecimento do oceano", pondera Bonatto. Isso abriria a possibilidade de novas misturas genéticas entre os lobos-marinhos, alterando a composição populacional estabelecida na Era do Gelo.