“Não foi só o colonizador, não foram só os europeus que desenvolveram filosofia e conhecimento sobre dinheiro e finanças. O povo preto também desenvolveu, a partir da sua visão de mundo”, pondera. “Eu preciso divulgar, porque eu gostaria de ter recebido esse conhecimento quando eu era mais nova. Na escola, por exemplo. Será que a minha relação com o dinheiro não teria sido muito diferente se, desde o meu ensino fundamental, eu soubesse quem foram as ganhadeiras? Se eu soubesse quem foram as irmandades e as confrarias de mulheres negras que juntavam joias e dinheiro? Se eu conhecesse esse lado, essa potência da minha história, será que eu também não poderia construir uma autoestima e uma relação com o dinheiro muito melhor?”
Produzir conteúdo de forma diferente da maioria dos influenciadores de finanças também permite questionar o discurso recorrente no meio de que a pobreza é culpa dos próprios pobres. Amanda busca fazer um ajuste fino que também não pode tirar do indivíduo a responsabilidade e a potência de tentar mudar sua realidade. A influenciadora conta que, em vez de prometer o primeiro milhão em cinco passos, ela propõe que, se você se organizar hoje, você consegue ampliar a linha de largada para o seu filho, dando a ele uma base mais sólida para construir sua jornada. Para ela, essa perspectiva quebra a ansiedade gerada pelas redes sociais por objetivos como se aposentar com 30 anos, algo inatingível para a grande maioria.
“Quando um influenciador de finanças transfere toda a culpa para o indivíduo, além de ser um discurso raso e muito fácil de fazer, ele não tem compromisso de mudar a vida daquela pessoa. Que tipo de mudança a gente promove na vida dessa pessoa se ela não consegue refletir também que o meio que ela vive tem impacto sobre a forma com que ela lida com dinheiro?”, questiona a influenciadora, que afirma que esse discurso hegemônico também vem de um lugar de privilégio.
“Tem muito influenciador que passa uma visão de que não é vantajoso você comprar um imóvel. Esse é um processo que ignora completamente a realidade da maioria da população que não teve acesso à casa própria, cujos pais não tiveram uma casa própria, e que pode ser a primeira geração a adquirir um imóvel para chamar de seu. Isso vai muito além da matemática básica, envolve sonhos, envolve vivência das pessoas. Ter uma casa própria é a garantia, por exemplo, de que, em um momento de crise financeira, você não vai precisar morar na rua”.
Focada no bem viver e em uma vida que vai além das necessidades básicas e permite o acesso às diversas formas de lazer, cultura e liberdade, a promoção da prosperidade que Amanda prega é a própria abolição concluída, ainda distante da maioria da população negra, avalia a influenciadora.
“Essa abolição foi incompleta porque, até hoje, a maioria da população negra compete muito por coisas que são básicas, como moradias, saúde, educação e emprego. O que é um objetivo para uma pessoa branca e rica, um objetivo financeiro, para a pessoa pobre é quase inatingível. Então, ela tem objetivos mais realistas. Às vezes, a pessoa quer se organizar para fazer uma viagem, para conseguir ter uma reserva para não se preocupar se vai faltar dinheiro no final do mês. Às vezes, o objetivo da pessoa é conseguir esse bem estar que deveria estar disponível para todo mundo, mas infelizmente não está. Toda a organização financeira da pessoa vai para garantir o básico, sendo que, se fosse diferente, ela poderia com essa organização financeira realizar sonhos”.
Algoritmos racistas
Jornalista e fundadora da revista Brejeiras, voltada para mulheres lésbicas, Camila Marins conta que a atuação de comunicadores negros ampliou a circulação de narrativas positivas sobre essas populações e pressiona os meios de comunicação a pautarem o antirracismo e também a contratarem pessoas negras para seus quadros de trabalhadores. Por outro lado, ela defende que as redes sociais, mesmo sendo instrumentos dessa mobilização, têm algoritmos racistas que expõem a população negra ao discurso de ódio.
"É um desafio muito grande fazer com que a população negra esteja na internet sem sofrer narrativa de ódio e acesso a desinformação, e que os algoritmos façam com que a comunicação negra chegue ao maior número de pessoas", afirma.
Camila Marins e outras três jornalistas fundaram a revista Brejeiras em 2018 diante de um cenário de apagamento e fetichização de mulheres lésbicas na mídia. O quadro, que já era difícil, se agravou com o assassinato da vereadora Marielle Franco no mesmo ano, com a campanha e eleição da extrema direita à Presidência da República no ano seguinte, e com a pandemia de covid-19 a partir de 2020.
"Com o assassinato, a gente adiou o lançamento, porque foi um trauma coletivo, e fizemos mês depois. Fizemos quatro edições da Brejeiras, rodamos o país e até fora, na Alemanha, utilizando essa comunicação impressa como uma forma de mobilização da luta e de organização coletiva, para fortalecer o movimento social e as nossas pautas lésbicas. E, aí, vem o governo Bolsonaro. É mais um baque muito forte, porque aprofunda a dificuldade de financiamento, e o aumento dos empregos precários dificultam muito a nossa situação, não só como Brejeiras, mas como população. E a pandemia foi um momento de luto nacional e internacional, lidando com o isolamento também. Não conseguimos fazer a Brejeiras nesse momento", lembra ela.
Com as mudanças na política nacional e a melhora do cenário epidemiológico, o grupo prepara a volta da revista impressa. O projeto continuou de forma ininterrupta na internet desde a sua fundação, e voltará ao impresso com uma edição que contará com a participação das leitoras, relatando sua sobrevivência à pandemia de covid-19. A revista pretende disputar o significado de “sapatão preta” como positivo, enfrentando discursos de fetichização e criminalização dessas mulheres.
“Na Brejeiras, a gente tem uma política feminista e antirracista que a gente bota em prática com a maioria de mulheres negras sendo entrevistadas, com suas imagens impressas. Nas revistas, a gente sempre vê nas fotos uma maioria de mulheres brancas, com aquele padrão de corpo magro. Então, a gente traz outros formatos de estética e de ética”, defende. “A gente contribui para disputar um discurso de pensar que, se a coisa tá preta, é porque ela tá boa. E pensar que a estética negra tem beleza, é bonita, tem vida, que não está só associada a morte, desemprego, servidão, escravização e colonização pelos quais passamos. O discurso antirracista é para ultrapassar esse discurso colonial, racista e violento pelo qual mulheres negras passam todos os dias, tanto nas ruas quanto nos meios de comunicação”.
Fomento à comunicação
A própria história sobre o fim da escravidão, ressalta Camila, é objeto de disputa da comunicação antirracista neste momento, para o resgate da luta da população negra contra o sistema escravista e por liberdade, contra um senso comum de que ela veio “das mãos da princesa Isabel”, que assinou a Lei Áurea. Nesse contexto, ela defende o fortalecimento e a garantia de orçamento para o ensino da história afro-brasileira nas escolas, a reserva de faixas de programação nos veículos de comunicação para pautas negras e a criação de editais de fomento para impulsionar comunicadores negros e comunitários.
“A gente precisa de uma lei de fomento à comunicação negra no Brasil, que garanta faixas de conteúdo da pauta negra na comunicação pública, privada e nas redes sociais. A gente precisa impulsionar e fomentar cada vez mais para que esses comunicadores cheguem a mais pessoas. Eles estão espalhando informação e letramento racial na internet e fazendo um trabalho muito importante de disputa de narrativas, mas não dá para a gente romantizar a precariedade e a falta de financiamento. A gente precisa de fomento do Estado”.
Com a transformação proposta pelos comunicadores negros já em circulação na internet, Camila Marins convida mais jovens negros, e principalmente mulheres negras, a produzirem conteúdo sobre suas realidades, a falarem de todos os temas e a demarcarem seu lugar como maioria da população.
“Comunicação é um direito humano, portanto se apropriem da comunicação popular, alternativa, e se apropriem para fazer muita comunicação a partir da sua visão de mundo, daquilo que está ali no seu território, no seu local de trabalho, na sua casa, no que está acontecendo ao seu redor. Fala do buraco da rua. Fala do postinho que tá sem médico. Fala da sua casa, fala da falta de comida, fala sobre amor. A gente também pode falar de beleza. A gente pode falar de estética, a gente pode falar de tanta coisa bonita. Façam comunicação, a comunicação é instrumento poderoso de transformação da sociedade, de transformação desse projeto de Brasil que a gente quer, justo, solidário e para todas as pessoas, pensando principalmente a maioria dessa população, as mulheres negras”.