MPF aponta risco de morte de yanomamis em jornadas por benefícios no AM
MANAUS, AM (FOLHAPRESS) - O MPF (Ministério Público Federal) apontou, em petição encaminhada à Justiça Federal na última quinta (15), insegurança alimentar e risco de morte de indígenas yanomamis que ficam no lado do Amazonas, em razão de deslocamentos forçados para cadastros e saques de benefícios em cidades como Barcelos, no médio rio Negro.
No documento, assinado pelo procurador Fernando Merloto Soave, o MPF pediu que o governo federal seja obrigado a enviar servidores à região em "caráter emergencial", de forma a diminuir a "vulnerabilidade atual dos yanomamis".
A Procuradoria no Amazonas também quer que Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), Caixa Econômica Federal e INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) sejam condenados pela Justiça para adequação das políticas públicas referentes a benefícios sociais, como aposentadorias e Bolsa Família. O MPF já havia movido ação civil pública nesse sentido.
Centenas de yanomamis se deslocam a Barcelos todos os meses, para cadastro e saques de benefícios. As jornadas podem durar até nove dias, pois as viagens são feitas em embarcações com motores de baixíssima potência.
Grupos de indígenas fazem paradas ao longo do percurso, no curso do rio Negro, para alimentação e descanso. Eles também ficam alojados na cidade.
Vídeos encaminhados ao MPF no Amazonas, com registro de destruição de barracas por um temporal (que feriu crianças yanomamis), embasaram o pedido apresentado à Justiça.
A Procuradoria quer que o acesso a benefícios como Bolsa Família e aposentadorias ocorra diretamente nas comunidades, sem a necessidade dos longos deslocamentos forçados. E que os indígenas sejam consultados, dentro do que prevê a convenção número 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho).
A realidade cultural diferenciada de povos indígenas de recente contato deve ser levada em conta pelos órgãos públicos, "contemplando a urgência na adoção das medidas necessárias em face da grave vulnerabilidade atual", afirmou o MPF na petição à Justiça Federal no Amazonas.
O problema se estende a outros indígenas no estado, conforme o MPF, como os hupdahs, yuhupdehs, madiha kulinas e pirahãs.
A Procuradoria apontou no documento um bate-cabeça da Funai do governo Lula (PT) diante do problema.
"Chega-se a haver uma ausência completa de coordenação e de entendimento entre a própria área que realiza a defesa jurídica do órgão indigenista oficial e a área executiva", afirmou o procurador Merloto.
No último dia 12, a Funai pediu a extinção do processo sobre adequação dos benefícios, enquanto técnicos seguem fazendo reuniões mensais para tentar uma articulação entre União, estado e município que evite os deslocamentos forçados dos yanomamis até Barcelos.
"Enquanto isso, os povos indígenas e tradicionais permanecem vulneráveis às políticas públicas desenvolvidas sem respeito à cultura e tradições", disse o MPF.
A reportagem questionou a Funai sobre os apontamentos feitos e não houve resposta até a publicação deste texto.
O fluxo de centenas de yanomamis a núcleos urbanos é agravado pelos deslocamentos desses indígenas para exploração na extração da piaçaba, como a Folha mostrou em série de reportagens publicadas em maio.
O modelo rudimentar a que são submetidos endivida os trabalhadores, incluídos yanomamis que vivem em aldeias da terra indígena situadas no lado do Amazonas. O território se estende por Roraima, onde estão 17 mil indígenas. No Amazonas, são 10,3 mil.
O apagão da Funai na região -iniciado em 2018 no governo Michel Temer (MDB), agravado nos anos de Jair Bolsonaro (PL) e mantido nos primeiros meses da gestão de Lula- resultou em um avanço da presença de indígenas na extração da piaçaba, a fibra de uma palmeira ainda usada largamente na fabricação de vassouras.
Há indícios de retirada da fibra de dentro do território demarcado, por pessoas que não vivem na área.
Além disso, os yanomamis percorrem longas jornadas até comunidades ao longo do rio Padauiri, fora da área demarcada, em viagens que duram três dias em embarcações com motores de baixa potência -as "rabetinhas".
O MPF disse que acompanha os casos de exploração, e tenta obrigar o reforço de servidores da Funai em Barcelos.
O órgão na cidade tem apenas um servidor efetivo e um terceirizado. A coordenação é feita por um substituto, que se desloca periodicamente de São Gabriel da Cachoeira (AM) para o município. As fiscalizações na região dos piaçabais são praticamente inexistentes.
Na petição encaminhada à Justiça, a Procuradoria cita o problema: "No caso de Barcelos, nem sequer há neste momento presença física da Funai no local atualmente, uma vez que a CTL (coordenação técnica local) de Barcelos não está com servidor lotado para atuação no município." A CTL foi desmantelada em 2018 e nunca foi restabelecida.
"Com certeza muitos indígenas morreram por essa não adequação das políticas públicas dos benefícios. Entramos com duas ações na Justiça, ainda em 2020. Conseguimos as decisões, que não foram implementadas", afirmou o procurador Merloto em entrevista coletiva à imprensa na manhã desta segunda-feira (19), em Manaus.
"Existe uma invisibilidade do povo yanomami no Amazonas", disse.
Em janeiro, o governo Lula declarou estado de emergência em saúde na terra yanomami, em razão da explosão de casos de malária e de doenças associadas à fome -como desnutrição grave, diarreia aguda e pneumonia- entre os indígenas no lado de Roraima.
A crise humanitária ocorreu como consequência da invasão de mais de 20 mil garimpeiros no território em Roraima, estimulados pelo governo Bolsonaro. As ações em curso na atual gestão, que incluem a retirada de invasores, estão limitadas à porção da terra indígena em Roraima.
"Tem muito sofrimento de crianças, de idosos. A gente precisa de pessoas permanentes [para os atendimentos aos indígenas]. E tem problemas de saúde", disse Julião Yanomami, umas das lideranças indígenas da região do médio rio Negro que participaram da entrevista coletiva na unidade do MPF em Manaus.
"Muitas mulheres ficam em Barcelos esperando barco chegar. Essa espera vai completar quatro meses. Homens, mulheres, crianças enfrentam fome. Tem muita gente sofrendo nas ruas, procurando comida", afirmou Valzione Yanomami, que também esteve no MPF.