Recriminar fetiche é moralismo ultrapassado, diz Christian Dunker

Por MARCELLA FRANCO

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O ator Fernando Mais viu seu nome subir nos trending topics do Twitter no último fim de semana não por qualquer uma das produções em que trabalhou, mas porque usuários descobriram que era ele o autor de um famoso perfil dedicado à escatologia.

Gustavo Scat, seu pseudônimo, excitava-se no contato com fezes e outros dejetos. Escreveu livro sobre o tema e relatava suas experiências fetichistas. No sábado (8), foi exposto e julgado pelo tribunal das redes sociais.

A origem da palavra fetiche remete à ideia de feitiço -vem daí a espécie de crença mágica que se dá ao poder de objetos na prática sexual.

Christian Dunker, psicanalista e professor titular em psicanálise e psicopatologia do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo), ajuda a entender o tema e fala sobre a ideia de que um fetiche pode ser melhor ou pior do que o outro.

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PERGUNTA - O que é fetiche?

CHRISTIAN DUNKER - Para a psicanálise, o fetiche é um objeto que acaba atraindo para si tanto o objetivo quanto a satisfação sexual da pessoa. Um fetichista uma vez definiu o fetiche da seguinte maneira: "Eu sou tão apaixonado pelas botas que, infelizmente, para obtê-las, às vezes eu tenho que receber uma mulher junto".

Fetiche é quando aquilo que poderia ser sedutor e atraente é um meio para o erotismo, é uma condição para que o erotismo funcione. O objeto, no caso do fetiche, se torna fim em si mesmo, ele se autonomiza.

P - Todo mundo tem um ou mais fetiches?

CD - Esses teóricos originais do fetichismo dividiam os fetichistas em grandes fetichistas e pequenos fetichistas. Pense no filme brasileiro "O Cheiro do Ralo" (2007): ali a gente pode ver o fetiche por bundas. O personagem vai descobrindo esse fetiche a partir do cheiro e da sujeira, e num determinado momento isso começa a realmente atrapalhar muito as relações dele com as mulheres, porque ele parece mais interessado nas bundas do que nas mulheres em si mesmas. Esse seria um exemplo de grande fetichista.

O pequeno fetichista é aquele que estabelece certas condições para que seu erotismo funcione em relação ao outro. [Sigmund] Freud, aliás, diz que todos nós em alguma medida somos pequenos fetichistas, que temos os nossos fetiches.

E muitas vezes as pessoas nem percebem, e dizem que tal relação "deu química", "fez o match". Alguns têm consciência do que é, seja o formato dos dedos, o jeito da mão, o tipo do cabelo, se é loiro ou moreno etc. É um traço do outro que assume uma função de condição, ou seja, sem isso não vai rolar, sem isso não tem química.

P - Um ator foi exposto neste fim de semana nas redes sociais porque seu fetiche em escatologia foi tornado público. Tem fetiches que são piores que os outros?

CD - Essa nossa recriminação com certas modalidades ou preferências sexuais é de um moralismo ultrapassado. O que a psicanálise diz é que todos nós, em alguma medida, vamos ter traços perversos, ainda que nas nossas fantasias. Então, quando a gente vê um ator, uma pessoa famosa, que cultiva uma prática sexual que não é a nossa, isso deveria gerar respeito ou indiferença, porque cada um tem a sua, cada um tem a sua "vergonha", vamos chamar assim.

Mas nós adoramos criticar a vergonha dos outros, ou o fetiche dos outros nesse caso, para melhor nos reprimirmos. No fundo, os ataques a uma modalidade como outra qualquer de encontrar satisfação têm essa função, de autocontenção.

P - Por que há quem sinta vergonha do seu fetiche?

CD - Porque no fundo aquilo revela algo sobre nós, que nos comanda, que nos domina, que é uma espécie de regra que a gente é obrigado a seguir. E é algo que, no fundo, desumaniza o outro. É um traço que a gente percebe e pelo qual a gente se recrimina porque acha que a sexualidade deveria convergir com o amor, com os afetos, com os sentimentos, e não ser ligado assim ao colecionismo dos objetos em relação aos quais a gente tem uma relação de posse.

O fetiche é muito interessante porque ele convida o fetichista a possuir aquele objeto, mas na verdade o que a gente vê é que é o fetiche que possui o fetichista, e não o contrário.

P - Quando o fetiche se torna perigoso?

CD - Quando ele passa por cima da vontade, do assentimento, da relação propriamente dita com o outro. É possível que o Jack Stripador fosse um fetichista, por exemplo. Há criminosos famosos que assassinam suas vítimas para encontrar aquilo que está dentro dela, num fetiche com os órgãos internos.

No filme "Perfume - A História de Um Assassino" (2006), inspirado num caso real, a gente tem um ótimo exemplo de um fetiche ligado a um traço de odor. A pessoa começa a roubar o cheiro dos outros e para isso impõe crueldade, manipulação, uma relação perversa com o outro.

P - Brinquedos eróticos e fantasias de sex shop são fetiches?

CD - Às vezes isso de fato é uma construção fetichista. A gente nota isso pela sua monotonia, porque toda vez tem que ser igual, a pessoa não muda, não explora. O fetiche tem um traço assim de fixidez que não é legal quando o outro não está na mesma parada, não está no mesmo pique fetichista. Mas os brinquedos eróticos, no geral, se caracterizam pela variabilidade, você troca, muda, tudo sem grande prejuízo.

O fetiche, por sua vez, tem essa ideia de que aquilo é um objeto encantado, é um objeto que tem vida própria, é um objeto que tem propriedades que comandam o sujeito.

P - Tem fetiches que são mais comuns?

CD - No sentido do grande fetiche e do pequeno fetiche existem alguns que, sim, são mais comuns. Roupas íntimas, meias, sapatos, botas, tons de voz, couro, certos adereços que perfuram, piercings, tatuagens, é muito comum que tudo isso gere um efeito de fixação de interesse erótico.

Há fetiches também por formas corporais, quando a pessoa tem que ser gorda ou magra, muito pequena ou muito grande, com anões, com animais, isso é muito comum também. Fetiche com frutas é uma das parafilias mais correntes no nosso país.

Um fetiche raro era o de uma pessoa que, para transar, precisava ter o outro com um pé engessado. Isso remetia ao momento em que ele teve seus primeiros encontros sexuais e estava acamado porque tinha quebrado o pé. Aquilo mostra como o fetiche é um tipo de fixação da libido.

Mas qualquer coisa e qualquer objeto podem ser um fetiche.

P - O fetiche tem que ser tratado?

CD - Acho que o fetiche não precisa ser tratado a não ser que ele traga algum inconveniente, algum sofrimento para a própria pessoa ou para aqueles que são adjacentes àquela pessoa. Não diria que é uma coisa a ser corrigida, inclusive porque clinicamente os grandes fetichistas são tidos como intratáveis.