Material didático do governo de SP é raso e pouco confiável, dizem autores de livros didáticos
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Os materiais digitais didáticos produzidos pelo governo de São Paulo e utilizados nas escolas do estado "são rasos, superficiais e pouco confiáveis", de acordo com um relatório produzido pela Associação Brasileira dos Autores de Livros Educativos (Abrale) e encaminhado com exclusividade à Folha de S.Paulo.
Em geral, segundo eles, o material traz atividades que não apresentam rigor conceitual e editorial, além de ignorarem exigências da BNCC (Base Nacional Comum Curricular), documento que determina as diretrizes da educação no país e aponta os aprendizados a serem desenvolvidos em cada nível escolar.
Especificamente, entre os problemas apontados, está uma atividade de língua portuguesa que pede que o aluno produza uma reportagem com dados fictícios, o que "é péssimo, pois solapa o ensino do gênero jornalístico", como afirmaram os escritores. Em uma outra atividade, também de língua portuguesa, a carta de Pero Vaz de Caminha é tratada como "certidão de nascimento do Brasil", o que, segundo o relatório, "induz à exclusão dos povos originários como legítimos habitantes de nosso território".
A reportagem encaminhou essas e outras críticas do relatório à Secretaria de Educação, que respondeu que elas "estão descontextualizadas, são parciais e desconsideram que as aulas se relacionam com conteúdos que serão desenvolvidos em aulas futuras, inclusive de forma interdisciplinar, conforme práticas consagradas de planejamento escolar".
Na quarta-feira (2), um grupo de escritores especializados em livros didáticos se reuniu para avaliar conteúdos digitais oferecidos aos alunos das escolas estaduais por meio do Centro de Mídias da Educação de São Paulo, plataforma utilizada para as aulas.
O grupo de autores foi coordenado por Maria Cecilia G. Condeixa, presidente da Abrale, ex-professora de escolas públicas e privadas, autora de materiais educativos há mais de quatro décadas e representante do Brasil no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA) de 2000 a 2006.
A iniciativa dos autores foi uma reação à decisão da gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) de passar a utilizar nas escolas estaduais apenas material didático digital produzido pelo governo. A partir de 2024, serão abandonados os livros impressos e o material didático digital produzido por editoras e tradicionalmente comprados para as escolas por meio do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático), com verba do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, do MEC.
Os autores da Abrale, que, como todo o mercado editorial de conteúdos educativos, serão diretamente afetados pela mudança, também se mobilizaram em razão das críticas feitas aos livros didáticos do PNLD pelo secretário de Educação de São Paulo, Renato Feder.
Em entrevista à Folha de S.Paulo, Feder afirmou que ele e técnicos da Secretaria avaliaram os livros e concluíram que "perderam conteúdo, qualidade e estão superficiais".
Sobre isso, a Abrale afirmou que "os livros do PNLD ficam, em média, três anos em processo de construção autoral e editorial, até serem submetidos a um rigoroso crivo avaliativo de uma banca composta por integrantes de universidade brasileiras e professores de educação básica". Também cobrou que o secretário aponte exatamente por que, em sua opinião, os livros didáticos "perderam qualidade".
"Perderam qualidade? Conteúdo? Qual? Os livros são obrigadores a cumprir rigorosamente a BNCC [Base Nacional Comum Curricular], as Diretrizes Curriculares e a LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional] e seguem editais do MEC construídos a partir de parâmetros normativos constitucionais", diz a nota.
Já os materiais apresentados pela Secretaria de Educação de SP em seu Centro de Mídias "não contam com esse rigor conceitual, normativo e editorial", afirmaram os autores no relatório encaminhado à Folha de S.Paulo. Ao final do texto, eles provocam: "Proposta: Coloque-os lado a lado [os livros didáticos do PNLD e os produzidos pelo governo de SP] em qualquer banca de estudiosos e peça-se a opinião dos mesmos".
O relatório avalia, entre outros conteúdos produzidos pela Secretaria de Educação de São Paulo, uma atividade de língua portuguesa para o 7º ano que propõe ao aluno a produção de uma reportagem com um tema ficcional. Esse tema é uma nova carta de Pero Vaz de Caminha, que teria sido encontrada e que passaria a fazer parte de uma exposição denominada Brasil e Sua História Contada por Objetos ?tudo fictício.
Em tempos de fake news, aponta o relatório, a atividade orienta o aluno a inventar toda a reportagem, fantasiando cada detalhe: "Onde a carta foi descoberta, por quem e como?; Quando foi escrita?; Qual é o tema?; Quanto tempo ficou em análise? Os responsáveis pela análise eram historiadores portugueses, brasileiros ou de ambas as nacionalidades?"
O objetivo da atividade seria, entre outros, o planejamento de uma reportagem. Mas nada do que foi proposto, conforme aponta o relatório, condiz "com a confecção de uma reportagem, muito menos com o seu planejamento". "Uma reportagem jornalística se baseia em relatos e análise de dados de elementos do mundo real."
Além disso, a atividade não dá exemplos de reportagens, não ensina como planejá-las, nem explica regras desse gênero discursivo. "É uma atividade basicamente farsesca."
O material também é criticado por se colocar como um conteúdo para aulas de Projeto de Vida, sem oferecer subsídio para isso. "Há, simplesmente, uma associação do termo 'projeto de vida' com 'planejamento'. E só" , escreveram os autores de didático no relatório.
Em uma outra atividade de língua portuguesa do 7º ano analisada pelos autores, a carta de Pero Vaz de Caminha também é assunto e tem o título "Carta: documento histórico". O objetivo seria trabalhar o gênero de texto carta. Mas, segundo a análise dos escritores, em vez disso, o material confunde o aluno, dando a entender que "carta: documento histórico" seria um gênero discursivo. "Não é."
Os conceitos ficam ainda mais confusos, segundo eles, quando o material aponta que a carta de Caminha seria "a certidão de nascimento do Brasil", o que "ratifica a noção de ?descobrimento?, adotando a perspectiva da lógica colonial portuguesa".
Afirma ainda que o material não contempla o desenvolvimento de habilidades previstas na BNCC, como a de "analisar a forma de organização de cartas de solicitação e reclamação" e "marcas linguísticas relacionadas à argumentação, explicação ou relato de fatos".
O relatório aponta ainda problemas em um material de história para o 6º ano sobre os hebreus. Os slides se concentram nos aspectos religiosos, informando que "esse povo foi o primeiro que adotou o monoteísmo, acreditava em apenas um Deus", que "suas histórias são conhecidas no Brasil em razão da difusão da Bíblia pelo cristianismo" etc.
Para os autores, a aula "se restringe a apresentar os hebreus pelo viés bíblico" e é "superficial e generalista em relação à estrutura política e base econômica".
Uma videoaula de geografia também é questionada por utilizar mapas sem referência bibliográfica e apresentar muito conteúdo para pouco tempo de aula --esse material, segundo Secretaria de Educação de São Paulo, é antigo e não está sendo utilizado.
CONFIRA A ÍNTEGRA DA RESPOSTA DO GOVERNO DE SP
"As análises apontadas pela reportagem estão descontextualizadas, são parciais e desconsideram que as aulas se relacionam com conteúdos que serão desenvolvidos em aulas futuras, inclusive de forma interdisciplinar, conforme práticas consagradas de planejamento escolar. Tanto o conteúdo de geografia como o de língua portuguesa são materiais iniciais que terão aprofundamento ao longo do ano letivo dos temas propostos em cada aula.
O desenvolvimento das aulas digitais é ancorado no Currículo Paulista e todas suas vertentes. Os materiais usados em sala de aula apoiam o professor na condução das aulas e na explicação dos conceitos aos alunos. Assim, o material é adaptável justamente para permitir que cada professor personalize o conteúdo didático de acordo com a realidade e necessidades de cada turma."