SP havia atropelado processo de consulta a professores sobre livros didáticos
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Para padronizar o material didático que será usado nas escolas paulistas a partir de 2024, o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) havia atropelado uma consulta que tradicionalmente é feita aos professores para a escolha dos livros. Ao menos desde 2010, eram os educadores que decidiam o material que utilizavam em sala de aula.
A decisão do governo de SP de abrir mão da verba do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), do MEC, para a compra de livros didáticos impressos e de passar a produzir um material próprio, digital e padronizado para todas as escolas ocorreu menos de um mês após uma reunião em que a Secretaria Estadual de Educação prometeu aos educadores que a definição dos livros seria feita "de forma democrática".
A secretaria disse que respeitou os prazos estabelecidos pelo MEC e que decisão de sair do plano foi técnica.
Nesta quarta (16), a gestão Tarcísio recuou e anunciou a volta ao PNLD. "Intensificaremos os canais de consulta com a rede de ensino", diz a gestão, em nota.
A falta de consulta aos professores foi um dos pontos que levou o Ministério Público de São Paulo a instaurar um inquérito civil para investigar a decisão do governo paulista de utilizar apenas materiais próprios, e não mais os que são fornecidos pelo PNLD.
Ao abrir o inquérito, a promotora Fernanda Peixoto Cassiano questionou a Secretaria de Educação se essa decisão não afetará "o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, bem como as peculiaridades sociais, regionais e culturais".
Em uma reunião com diretores, no dia 22 de junho, o coordenador pedagógico da Secretaria do Estado da Educação, Renato Dias, explicou que o governo faria uma votação com os professores para definir se os livros didáticos do fundamental 2 (6º a 9º ano) seriam padronizados para toda a rede ou escolhidos pelas escolas ou pelas diretorias de ensino.
"A gente aqui na secretaria não pode e não quer impor nenhum modelo, mas vamos mostrar as concepções que temos para construir em rede, em conjunto", afirmou Dias.
Desde 2020, uma resolução do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, que libera verbas para a compra de material didáticos nos Estados e municípios por meio do PNLD, determina que seja feita uma consulta às redes de ensino para a escolha entre uma compra de livros unificada ou individualizada (por escolas ou diretorias de ensino).
Se a escolha for pelo modelo unificado, os docentes votam nos livros que preferem, e os mais votados são adotados para todas as escolas.
Na reunião com os diretores, o coordenador pedagógico explicou que as escolas deveriam realizar essa votação e encaminhar o resultado para a secretaria. Ele afirmou que o governo tinha preferência pelo modelo unificado, pois, segundo ele, isso facilitaria a formação de professores e a aplicação de provas iguais para todos.
"A percepção que a gente tem é que, se a gente fosse numa rota de um material único para toda a rede, seria muito bacana", disse o coordenador.
"Mas o fato de a gente da Coped [coordenadoria pedagógica] e da Seduc [secretaria de educação] achar que essa é uma boa forma não quer dizer que vai ser a forma, por isso estamos conversando com vocês", frisou Dias na live com os diretores.
Dias mostrou na reunião slides com o resultado da votação que a secretaria havia feito com os professores sobre o material didático do fundamental 1 (1º a 5º ano) no início do ano. Apenas 22% votaram por um material unificado; 25%, para que cada diretoria de ensino escolha o material, e mais da metade (53%), para que cada escola defina seus livros.
Uma diretora perguntou a Dias quem faria a escolha do material didático se, na votação, o modelo unificado fosse o mais votado. "A rede. É uma escolha democrática da rede", respondeu o coordenador.
O secretário de Educação, Renato Feder, porém, decidiu se antecipar à consulta e, no dia 20 de julho, solicitou a exclusão da rede paulista do PNLD.
A avaliação foi de que, mesmo que os professores seguissem a orientação de optar por um único material para toda a rede, o secretário não teria autonomia para escolher quais seriam as obras para cada disciplina.
Para escolher o material que será encaminhado às escolas, Feder optou por atropelar todo o processo que o próprio coordenador da secretaria havia chamado de "democrático" e abriu mão de uma verba de cerca de R$ 120 milhões do PNLD, abolindo o uso do livro didático impresso, para produzir material didático digital com recursos do estado.
Posteriormente, diante da forte reação negativa de educadores, o governador Tarcísio de Freitas disse que iria imprimir apostilas para os alunos com esse conteúdo feito para a plataforma digital.
Na reunião com os diretores, Dias criticou os livros do PNLD. "Eu trabalhei muito em editora e sei como acontece", afirmou. O coordenador tem no currículo passagem pela Somos Educação, uma das principais produtoras de livros didáticos do PNLD.
Ele também é um dos fundadores da Cloe, que, segundo o seu site, é "uma poderosa plataforma digital de aprendizagem que une, em um só lugar, tudo que escola, professoras, pais e estudantes precisam" e se propõe a "substituir integralmente todos os sistemas de ensino e livros didáticos", em todas as disciplinas e em todos os anos escolares.
A plataforma faz parte da empresa Camino Education, que possui também a Camino School, uma escola particular de São Paulo.
O site da Camino Education informa que, além de Renato Dias, os outros sócios fundadores da empresa são Fernando Shayer, Leticia Guimarães Lyle e Bruno Gebara. Também são sócios da Camino Education, conforme o seu site, a empresa de investimentos Kaszek Ventures e o SoftBank Group Corp. A empresa foi aberta em 21 de dezembro de 2018 e, hoje, o seu capital é de R$ 184,9 milhões.
O site da Camino Education informa que Dias "foi responsável pela concepção de plataformas e soluções digitais para desenvolvimento de currículo e integração entre conteúdo, avaliação e prática de sala de aula, como a BNCC na Prática ?que é utilizada por dezenas de milhares de alunos e professores em escolas privadas e públicas".
Informa também que ele possui mestrado em economia política internacional pela USP e graduação em relações internacionais pela PUC.
Questionada sobre a forma como a decisão de sair do PNLD foi tomada, a secretaria disse apenas que respeitou os prazos estabelecidos pelo MEC e afirma que manteve a consulta aos professores, pois ainda não havia confirmação de que a adesão parcial ao programa seria aceita. "A consulta seguiu porque, caso necessária, a escolha feita pela rede seria apresentada", disse em nota.
Sobre Renato Dias, a pasta disse que ele foi selecionado para o cargo por sua "trajetória e experiência profissional". Sobre a Camino Education, a secretaria afirma que ele "se desligou de todos os projetos da iniciativa privada que participava".
*
NOTA DA SECRETARIA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO NA ÍNTEGRA:
A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo permanece ativa no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) para a distribuição de livros literários. As escolas estaduais seguem recebendo e utilizando os livros do programa adquiridos nos anos anteriores.
As consultas feitas neste ano respeitaram os prazos estabelecidos para definir o sistema de escolha dos livros do PNLD, apenas na situação de adesão dos títulos didáticos. Mesmo com a decisão técnica que optou pela adesão apenas aos livros literários, a Seduc manteve a pesquisa em andamento pois ainda não havia confirmação de que esta adesão parcial seria aceita. A consulta seguiu porque, caso necessária, a escolha feita pela rede seria apresentada.
Sobre Renato Dias:
Renato Dias foi selecionado para a Coordenadoria Pedagógica da Pasta por sua trajetória e experiência profissional, principalmente nas áreas de desenvolvimento de currículos, avaliação educacional e produção de materiais didáticos. Ao longo dos mais de 12 anos de carreira, o coordenador pedagógico foi responsável pelo desenvolvimento de projetos educacionais para diferentes redes escolares, como Lumiar e RAPS (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade), bem como na elaboração de materiais didáticos e matrizes curriculares alinhadas à Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Comandou a área de Currículo, Avaliação e Qualidade Educacional do grupo Somos Educação, sendo o responsável pela produção de todo conteúdo e avaliações alinhadas à BNCC. Nesse contexto, em 2018, liderou o projeto "BNCC na Prática", uma plataforma gratuita de construção de currículos alinhados à Base.
Posteriormente, fundou e foi diretor de Produto e Inovação da Camino Education. Antes de assumir o cargo no início do ano, Dias se desligou de todos os projetos da iniciativa privada que participava.