Eles inovaram no uso de instrumentos musicais e em tocar gêneros de diferentes países da América Latina. Antes, a maioria dos intérpretes de canções folclóricas tinha abordagem mais nacionalista, voltada para a cultura do Vale Central, região de Santiago e arredores. Muitos dos novos músicos eram filiados ou próximos aos partidos de esquerda, principalmente o Partido Comunista do Chile, o que refletia diretamente nos temas e nas letras das músicas.
“As canções nesse contexto trazem muitas questões sobre a vida dos trabalhadores. Por exemplo, sobre a situação dos mineiros. A mineração no Chile já era muito importante, principalmente de cobre e de carvão. Também havia músicas que falavam dos camponeses e a exploração dos patrões”, explica a historiadora Natália Ayo Schmiedecke.
“E existiam ainda manifestações relacionadas às tradições indígenas. Independentemente dos problemas que esses músicos abordassem, entendiam que o simples fato de resgatar canções de origem quéchua ou aymará já era uma maneira válida de se opor ao imperialismo estadunidense”.
Ideal socialista
Violeta Parra morreu em 1967, mas deixou como legado o ativismo político musical. Nas eleições presidenciais de 1970, muitos artistas entenderam que era preciso se posicionar e trabalhar diretamente nas campanhas. Entre os que se colocaram ao lado do socialista Salvador Allende, estavam Victor Jara, Isabel e Ángel Parra, Sergio Ortega, e os conjuntos Quilapayún, Inti-Illimani e Aparcoa. Eles participaram de comícios e gravaram canções em defesa da candidatura, que foi construída em cima do lema “Não há revolução sem canções”.
Nesse contexto, os músicos que se identificavam com o projeto político da Unidade Popular passaram a ser identificados pelo termo “Nova Canção Chilena”. Em comum, compunham e interpretavam canções que expressavam a esperança de novos tempos por meio do socialismo. O nome já havia sido usado como título de um festival de 1969, mas passou a designar um movimento político bem definido durante a campanha e o governo de Allende.
Com a vitória nas urnas, eles continuaram apoiando o governo por meio de novas composições, eventos e até em cargos públicos. Isabel Parra, Víctor Jara, Inti-Illimani e Quilapayún foram nomeados Embaixadores Culturais do Governo Popular. Em 1971, passaram a integrar uma secretaria da Universidad Técnica del Estado (UTE) e ganhar salários para realizar apresentações durante o ano. Uma canção bem representativa desse momento é Manifiesto, de Víctor Jara. Ele defendia a música politicamente engajada, em oposição às letras vazias de mensagens e conformadoras de opressões.
“O canto tem sentido./ Quando palpita nas veias./ De quem morrerá cantando./ As verdades verdadeiras./ Não as lisonjeiras “baratas”./ Nem as famas estrangeiras./ Mas sim uma canção popular./ Até o fundo da terra./ Aqui onde chega tudo./ E onde tudo começa./ Canto que foi valente./ Sempre será canção nova”.
Golpe e resistência
O golpe militar de 1973 incluiu membros da Nueva Canción entre os inimigos a serem destruídos. Uma parte deles foi vítima de tortura e assassinato, outra teve de escolher entre a clandestinidade e o exílio.
“O regime militar censurava toda produção musical associada à esquerda. Então, o simples ato de tocar instrumentos andinos já era visto com desconfiança, era desencorajado e poderia resultar em problemas”, explica Natália Schmiedecke.
“A Nueva Canción Chilena se desmantela nesse contexto. Depois, os músicos vão ter um papel muito importante de oposição, participando de festivais de solidariedade contra a ditadura chilena no exterior. Eles viajam muito em diferentes países do mundo levando essa mensagem de resistência”.
Ainda no final da década de 1970, um movimento de continuidade ressurgiu no Chile sob o nome de Canto Nuevo, uma referência clara ao trabalho dos artistas anteriores. Para enfrentar a censura, eram compostas músicas com sonoridades diferentes, temas menos propositivos e mais reflexivos.
O uso de metáforas também se tornou comum para mascarar críticas ao regime militar. Uma das estratégias era falar de problemas como desemprego, desabastecimento, poluição, entre outros, que não eram explícitos contra a ditadura, mas desafiavam a narrativa oficial militar de que o país estava em ordem e prosperando.
Canto por justiça
Nos dias atuais, o resgate de artistas e músicas daquele período é uma forma de manter viva as utopias, a memória dos crimes da ditadura e da resistência. Mas, no campo político e jurídico, novos passos foram para punir torturadores e lideranças do regime militar que torturou e matou milhares de pessoas no país.
Um marco importante, nesse sentido, ocorreu recentemente. Em 2018, a justiça chilena havia condenado sete ex-militares como autores dos crimes de sequestro e homicídio qualificado contra Víctor Jara e Littré Carvajal (diretor nacional das prisões na época do governo Allende). Em 2021, as penas foram aumentadas. Seis deles foram condenados a 25 anos de prisão e um a 5 anos. Os réus entraram com recursos na Corte Suprema e, no fim de agosto deste ano, tiveram os pedidos de revisão das penas negados. Um dos ex-militares se suicidou antes de ser preso.
Em julho deste ano, um juiz da Flórida, nos Estados Unidos, retirou o direito à cidadania norte-americana do ex-tenente do Exército Pedro Pablo Barrientos Nuñez, que reside no país desde 1990. Ele é apontado como o autor material do assassinato de Víctor Jara. Na sentença, o juiz diz que Barrientos mentiu no processo de imigração, porque negou ter participado de genocídio ou homicídio, o que tornaria a cidadania dele ilegal.
A Fundação Víctor Jara, que tem como presidenta a viúva Joan Jara, celebrou a decisão nos Estados Unidos, mas espera agora que o governo chileno faça a parte dele e peça a extradição de Barrientos, para que ele possa ser julgado no país. A organização entende que, além de honrar a memória do músico, este seria um símbolo importante de justiça para todos os torturados, mortos e desaparecidos na ditadura. Principalmente quando fantasmas do passado ameaçam retornar.
“Vivemos um ataque feroz do negacionismo por parte daqueles que apoiaram o golpe militar, uma direita extremista que tem sido impulsionada por avanços nas suas posições em todo o mundo. Hoje mais do que nunca é preciso lutar em um campo que estará sempre em disputa: o da memória e dos direitos humanos. Estamos comprometidos com essas lutas e não estamos sozinhos neste caminho, somos milhares no Chile e no mundo. Estamos acompanhados pelo exemplo de Víctor Jara, seu legado e canções cheias de amor e vida”, disse o diretor executivo Cristián Galaz.