“Acho que eu consigo juntar essa história de jornalismo que eu tenho, de ter memória das coisas, de ter feito muita cobertura, ter participado de muita coisa, conseguir ter uma conversa aberta e, ao mesmo tempo, uma conversa informativa, não leviana. A ideia é juntar isso e fazer televisão, fazer um programa que as pessoas se entretenham, mas saiam com a sensação de terem aprendido algo”, disse em entrevista à Agência Brasil.
Sobre a expectativa de estrear na televisão, especialmente em uma emissora pública, Demori afirma que quer ajudar a reconstruir a independência da comunicação pública, como ocorre na maioria das experiências que ele mesmo acompanhou quando viveu na Europa.
"A EBC tinha uma ideia, ainda espero que prospere, que é a de ser uma emissora independente, como é na Itália, na Inglaterra, na França. É conseguir, de fato, fazer uma emissora que não fique ao sabor do jogo político do momento. Por isso, quando rolou esse convite, eu aceitei na hora, apesar de saber que iria ouvir críticas de colegas, do público, que enxergam a TV pública erradamente como cabide de emprego, como gasto desnecessário. Isso é um pensamento completamente idiota. A TV pública não é isso."
"Precisamos aumentar a credibilidade na TV pública, fazer as pessoas gostarem, como a população passou a defender o SUS [Sistema Único de Saúde]. Quando as pessoas gostam, elas defendem. Isso aqui [EBC] é serviço de utilidade pública número um."
Além de falar sobre comunicação pública, o novo apresentador da TV Brasil analisou o cenário de combate à corrupção e os desafios do jornalismo em tempos de hegemonia das plataformas digitais.
Confira os principais trechos da entrevista exclusiva à Agência Brasil:
Agência Brasil: Como será o formato do programa, o perfil dos entrevistados e o que as pessoas podem esperar do Dando a Real com Leandro Demori na TV Brasil?
Leandro Demori: A gente pegou o formato clássico do jornalismo, que é o formato de entrevista, um dos mais clássicos da televisão e do rádio, mas também com essa pegada que veio da internet, no pós-covid, misturando um pouco com o modelo de mesa cast, que tem grandes méritos de conseguir se comunicar bem com as pessoas: consegue audiência, as pessoas gostam e obtém uma retenção [dos espectadores]. Já vimos entrevistas de duas horas, três horas [nesse formato]. Porque é bom, entretém, as pessoas gostam da conversa, tem um sentido de papo mesmo. Não tem aquela onda de fazer pressão sobre o entrevistado, ficar botando contra a parede, não é essa a ideia.
Só que tem uma lacuna nos programas do tipo mesa cast, que é a preparação. Alguns são muito bons, mas, no geral, são mal preparados, você não consegue ver tréplicas, por exemplo. Alguém vai lá, fala uma bobagem e o entrevistador não está preparado para rebater. Ou não tem memória para saber como as coisas aconteceram. Então, acho que eu consigo juntar essa história de jornalismo que eu tenho, de ter memória das coisas, de ter feito muita cobertura, ter participado de muita coisa, conseguir ter uma conversa aberta e, ao mesmo tempo, uma conversa informativa, não leviana.
A ideia é juntar isso e fazer televisão, fazer um programa que as pessoas se entretenham, mas saiam com a sensação de terem aprendido algo. Os convidados serão principalmente figuras do poder da República mesmo. O primeiro entrevistado é o ministro Gilmar Mendes, do STF, e o programa vai ter duração de meia hora, todas às terças-feiras, às 22h.
Agência Brasil: Você tem uma trajetória como repórter na mídia comercial, depois em projetos de jornalismo investigativo, como é o caso do The Intercept Brasil. Qual a sensação, agora, de trabalhar em uma emissora pública, como a TV Brasil? E, na sua opinião, qual deve ser o papel da mídia pública em uma democracia?
Leandro Demori: Eu acho que os colegas jornalistas [no Brasil] erram na visão que eles têm sobre comunicação pública. Eu morei um bom tempo na Itália e lá, a comunicação, principalmente de televisão, é pública. A [emissora] RAI é a TV pública da Itália. E você não tem isso só na Itália, tem em vários países do mundo. Na Itália são três canais de TV aberta da RAI, cada um deles focado em uma coisa. O RAI 1 realmente é um canal mais popular, com programas de auditório, programas como o Big Brother, tem alguns noticiários também. Mas se você vai para o RAI 2 e o RAI 3, são canais fabulosos, com documentários, programas de reportagens que a gente quase não tem mais no Brasil, programas de entrevistas longuíssimos, de três, quatro horas.
Tem uma cultura na Itália, com todos os seus problemas, de que o primeiro-ministro vai na TV pública dar entrevista, os ministros vão. As pessoas não se escondem, elas encaram a televisão pública como uma necessidade de falar com o público.
Isso abriu muito a minha cabeça, quando eu morei lá, em 2008, 2009 e 2010. Era no mesmo momento que surgia a EBC, então eu fiquei muito empolgado com isso. E a EBC tinha uma ideia, ainda espero que prospere, que é a de ser uma emissora independente, como é na Itália, na Inglaterra, na França. É conseguir, de fato, fazer uma emissora que não fique ao sabor do jogo político do momento. Por isso, quando rolou esse convite, eu aceitei na hora, apesar de saber que iria ouvir críticas de colegas, do público, que enxergam a TV pública erradamente como cabide de emprego, como gasto desnecessário. Isso é um pensamento completamente idiota. A TV pública não é isso.
Outra coisa que me desafiou muito é ver o que aconteceu nos últimos anos com a EBC. A gente soube, é público, que a TV pública foi proibida de usar a palavra ditadura. Teve programa tirado do ar porque apareceu na tela um muro pichado com a imagem da Marielle Franco. Coisas absurdas, inaceitáveis.
Para mim, é uma honra trabalhar na TV Brasil, uma oportunidade imensa. Eu quero dar um pouco do que construí, do meu nome, da minha carreira, e mostrar para as pessoas que isso aqui é das pessoas, uma televisão pública, que elas vão ter entretenimento, informação, debates. A gente viu o que aconteceu nos últimos anos: sucateamento, censura, perseguições. Isso não pode acontecer e eu espero ajudar a colocar um tijolo nessa história, ajudar a emissora a se estruturar para não ficar ao sabor do jogo político.
Agência Brasil: A EBC chegou a ter, em seu formato original, mecanismos de autonomia como um Conselho Curador com ampla participação da sociedade civil e um mandato para diretor-presidente, similares aos que existem em outros países, mas que foram extintos no governo Michel Temer, ainda em 2016. Levando em conta esse contexto que você falou, sobre o desmonte da EBC nos últimos anos, já na gestão Jair Bolsonaro, quais as suas expectativas sobre o que deve balizar a reconstrução da comunicação pública no Brasil pelo atual governo?
Leandro Demori: Não está na minha alçada, mas eu acho que a EBC deveria passar por uma estruturação que desse independência real para ela, isso é o mais importante. Veja que coisa curiosa: foi aprovada no Brasil uma "independência" do Banco Central que ninguém mexe no presidente da instituição. Por que alguém consegue mexer no presidente da EBC quando muda o governo? Então, a real independência no modelo que a gente tem no Banco Central deveria era estar aqui dentro. Isso é uma construção e eu espero que esse governo tenha vontade de fazer.
Na RAI, na Itália, quando as pessoas interferem muito politicamente na emissora, o povo reclama. No que me cabe, eu vou tentar também buscar por audiência. Jornalista normalmente é avesso a isso, acha que audiência tem que ser dada por programas como o Big Brother. Mas dá para fazer audiência com conteúdo relevante, as pessoas entendem e valorizam. E precisamos aumentar a credibilidade na TV pública, fazer as pessoas gostarem, como a população passou a defender o SUS [Sistema Único de Saúde]. Quando as pessoas gostam, elas defendem. Isso aqui [EBC] é serviço de utilidade pública número um. Em um contexto de pandemia, a TV pública seria a única emissora que poderia ficar 24 horas no ar alertando a população sobre covid-19. A TV comercial não faria isso, porque não vai parar de passar novela, Big Brother ou comercial por isso.
Agência Brasil: O ministro do STF Dias Toffoli invalidou todas as provas da Operação Lava Jato obtidas nos acordos de leniência da Odebrecht, feito em 2016. Toffoli chamou de “armação” a prisão do presidente Lula, em 2018, e considerou o episódio um “erro histórico”. Como você avalia o impacto dessa decisão, tendo em vista que a mudança de percepção sobre a operação foi a principal decorrência da série de reportagens da Vaza Jato?
Leandro Demori: A decisão do Toffoli está quatro anos e meio atrasada. Eu entendo que o STF teve que tirar a tampa dessa panela de pressão aos poucos. O Supremo, durante muito tempo, foi quase um parceiro da Lava Jato, coadunando com tudo o que aconteceu ali, com as prisões ilegais, proibição de entrevistas, presidente Lula preso, proibição de autorização para que ele fosse a velório, prisões preventivas que se estenderam por até dois anos. Eu não tenho o menor prazer em defendê-lo, mas o Eduardo Cunha ficou preso preventivamente de modo ilegal, durante anos, sem julgamento. Ou você julga e condena, ou você solta.
Estou lendo um livro sobre o caso do Julian Assange e o relator especial da ONU [Organização das Nações Unidas], que é o cara que vai investigar o caso do Assange. As semelhanças que ele faz com a Lava Jato são absurdas. Maus-tratos e tortura, no limite. Você isola, humilha, amedronta, segue pontos para a pessoa se quebrar, entregar o que nem sabe.
A decisão do Toffoli é tardia, mas o STF foi despressurizando aos poucos. Primeiro reverteu a prisão em segunda instância, depois anulou os processos do Lula. O coração dessa decisão é uma avaliação técnica feita pelo ministro [Ricardo] Lewandowski, agora aposentado, que é perfeita: se você teve obtenção ilegal de provas você não pode usar no processo.
As pessoas que não gostam disso precisam reclamar com o Deltan [Dallagnol], com o Carlos Fernando, o Januário Paludo, o Sérgio Moro, porque eles obtiveram provas de forma ilegal na Suíça e trouxeram para o processo. No fim das contas, a ânsia deles, que era prender o Lula – que foi citado 22 mil vezes nas mensagens da Vaza Jato –, fez com que atropelassem vários institutos do Estado Democrático de Direito e do devido processo legal.
Agora, o Toffoli está navegando nessa maré, está se reposicionando no jogo todo, porque estava posicionado do outro lado. Mas eu nunca vou achar ruim um ministro, pelos motivos que for, se reposicionar para o lado certo, o lado do Estado Democrático de Direito, do uso de provas legais e a favor do devido processo legal. Para mim, está tudo bem.
Agência Brasil: Mais de quatro anos após a série de reportagens da Vaza Jato, você crê que o Brasil mudou de patamar, para melhor, em seus métodos de combate à corrupção?
Leandro Demori: O combate à corrupção tem um programa de fundo, que não podemos perder de vista. Isso está longe de ser qualquer teoria da conspiração porque todos os documentos estão aí. Os combatentes da corrupção no Brasil foram treinados em um modelo criado para o combate à corrupção nos Estados Unidos. É um modelo. No fim das contas, trata-se de uma usina de repatriação de dólares para o mercado americano, é isso que eles fazem. Os agentes do FBI [Polícia Federal dos EUA] viajam pelo mundo, falam com gente descuidada ou mal-intencionada, como era o caso dos procuradores de Curitiba, coletam informações, processam empresas estrangeiras nos EUA e levam dólares para lá. Isso é um sistema, os Estados Unidos não estão errados em fazer isso, do ponto de vista deles. Errados somos nós em termos sido treinados nisso e sermos usados para isso. É um pano de fundo, que substituiu a política de guerra às drogas.
Os EUA criaram a guerra às drogas nos anos 1960 e os países do mundo inteiro entraram nessa onda. Nos últimos 10, 15 anos, essa coisa veio despressurizando e vários países começaram a liberar as drogas, principalmente a maconha, inclusive os próprios Estados Unidos. Então, isso é uma arma geopolítica americana, que agora é a guerra de combate à corrupção. Eles identificam empresas que estão muito fortes em alguns setores e atuam em cima delas. Isso não aconteceu só no Brasil com as construtoras e com a Petrobras. Isso aconteceu na França com a Alstom, um caso clássico. Um executivo da Alstom que viajou pros Estados Unidos foi preso e ficou preso lá até começar a delatar. Levaram euros de um esquema de corrupção que tinha acontecido na França, com dinheiro francês, corrompido por franceses. Acho que as pessoas estão longe de entender isso e, possivelmente, quem está nos lendo ou nos ouvindo agora pelo rádio vai achar que a gente está falando na teoria da conspiração. Não tem problema nenhum, o tempo vai passar e tenho paciência suficiente para que as pessoas entendam, de fato, o que está acontecendo.
Agência Brasil: E sobre os procedimentos atuais, em meio às investigações de corrupção envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro e seu ajudante de ordens Mauro Cid, que assinou um acordo de delação premiada com a Polícia Federal. Você vê diferenças em relação aos métodos anteriores?
Leandro Demori: No micro, eu vejo alguns momentos bons, mas outros preocupantes. O Mauro Cid ficou preso preventivamente por dois meses e meio, três meses e saiu. Não ficou preso preventivamente por um ano e meio, dois ou três anos, como era na Lava Jato. Isso é um avanço porque você evita, como eu falei antes, uma pressão para o cara entregar coisas. No sistema judicial, não se pode fazer isso. Também vejo uns bons movimentos, do tipo, se fosse no tempo da Lava Jato, o que o Mauro Cid pensou em falar para a Polícia Federal já teria vazado como cardápio de delação, já teria o nome de todo mundo ali, com 200 pessoas tendo o nome jogado na lama e depois, na hora de ver as provas mesmo, ia sobrar cinco ali [condenadas], e as outras 195 iam ser espezinhadas, humilhadas. Por mais que eu não goste da Cláudia Cruz, a mulher do Eduardo Cunha, nada se provou contra ela na Lava Jato, só que ela passou para a história como uma bandida.
Eu acho que as coisas estão mais contidas, as coisas ficam no sigilo durante mais tempo, mas eu acho que ainda tem muito vazamento seletivo de informação, principalmente para uma ou duas emissoras de televisão, aquelas maiores que estão sempre ali, e isso é ruim para o processo legal, porque o julgamento na praça é mais importante do que julgamento de fato. Nessa brecha, aparece o salvador da pátria, o outsider, um tipo como Bolsonaro. Então, eu espero que nesse processo do Mauro Cid, dos militares, do Bolsonaro, seja levado a bom termo, com respeito ao devido processo legal como se tem na Suécia, na Noruega, na Alemanha, que é o sigilo absoluto enquanto a pessoa não é denunciada. Tem muita coisa para melhorar, mas já está bem melhor que 2015, 2016, que era uma festa.
Agência Brasil: Como é que você avalia a qualidade do jornalismo hoje em dia, especialmente em meio às mudanças aceleradas, nos últimos anos, pela hegemonia das plataformas na distribuição, consumo e disponibilidade da informação, e de como os algoritmos interferem esse ambiente, privilegiando discursos de ódio e outros tipos de conteúdo que causam mais engajamento?
Leandro Demori: Eu acho que a qualidade do jornalismo hoje, no geral – isso não só eu quem falo, já vi uma palestra do [jornalista] Élio Gaspari sobre isso –, é melhor do que no passado. Fiz uma pesquisa extensa para escrever um livro, que publiquei em 2016, sobre um mafioso italiano que viveu no Brasil, e li muitos jornais da época [anos 1960, 1970]. A qualidade média dos jornais do Brasil era horrível, essa é a real. As fontes eram muito ruins, era quase sempre o delegado que falava, o policial, o juiz ou o desembargador. Nunca ninguém ia lá ouvir o favelado, a pessoa que tomou tapa na cara, a vítima, a mãe da criança que tomou um tiro da polícia. Era um jornalismo muito mais feito da elite para elite, mais que hoje. Então, a qualidade do jornalismo feito atualmente é melhor, no geral.
Se você for pegar o que é produzido pela Agência Pública, se for pegar o que é produzido pela Ponte Jornalismo, o repórter não vai errar e contar história como um repórter de polícia dos anos 1970 contava. E você não tinha internet para desmentir como agora. Agora, por outro lado, plataformas dos algoritmos bagunçam o jogo porque a gente erra mais, pela pressa, e a gente não tem o controle da distribuição. Então, não somos nós que mandamos no que a gente faz. Isso faz com que a gente acabe piorando essa qualidade porque temos que jogar o jogo do algoritmo, de usar as palavras certas. Tem que usar repetição de palavra, o texto tem que ter até 48 caracteres no Twitter [plataforma X], no Instagram é de outro jeito, as escolhas editoriais são piores. Então, acho que as plataformas pioraram muito isso e por isso elas precisam ser reguladas, o que não temos no Brasil.
O Projeto de Lei 2630 foi combatido pelas maiores empresas já criadas pelo capitalismo em sua história. A gente não tá falando de gente que tá contando dinheiro. Google, Facebook, Microsoft, Apple, todos eles são muito mais poderosos, têm muito menos funcionários, têm muito mais lucro e influenciam muito mais no lobby nos Congressos do mundo todo do que a indústria do petróleo e dos carros jamais imaginaram. Fizeram uma compra de opinião no Brasil, inclusive de meios de esquerda, que as pessoas, do dia pra noite, começaram a bombardear o PL 2630. Na minha opinião, foi um erro. A gente deu um tiro no pé como jornalista.
O que vai acontecer se essa galera não for regulamentada é que, daqui a pouco, eles vão sentir que não tem mais clima para aprovar a regulação, e vão parar de financiar essa galera que foi quem teve opinião comprada, porque eles não precisam mais. Os caras tomaram conta do negócio de fato. Então, sou da opinião que o PL 2630 precisa voltar a ser debatido, precisa ser aprovado. Essa galera precisa responder judicialmente pelo que eles fazem e precisam dividir, de fato, a grana que eles ganham com o nosso trabalho. O Facebook, por exemplo, tentou tirar notícias no Canadá, tentou tirar notícias do Facebook na Austrália, e a audiência da plataforma caiu. Porque eles precisam do nosso trabalho. Eles são muito ardilosos porque ainda têm essa imagem de empresa fofinha, tech, bonitinha. Leva parlamentar para passear nos Estados Unidos, leva o jornalista para projeto de inovação tecnológica e você vai enredando as pessoas. Se a gente não aproveitar para regular essas plataformas, vamos perder uma oportunidade histórica superimportante.