Países rebatem argumentos de jovens em ação climática histórica, e ambientalistas veem negacionismo
LISBOA, PORTUGAL (FOLHAPRESS) - Em uma audiência considerada histórica por ativistas ambientais, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, uma das mais altas instâncias legais da região, começou a julgar a queixa de seis jovens portugueses, de 11 a 24 anos, contra os governos de mais de 30 países do continente --todo os membros da União Europeia, além de Rússia, Noruega, Suíça, Reino Unido, Turquia e Ucrânia.
O grupo, que relata ter a saúde e o futuro afetados pelos efeitos nocivos do aquecimento global, acusa as nações de não agirem de forma contundente para reduzir as emissões de gases-estufa e conter a subida de temperaturas.
Na última quarta-feira (27), os jovens e seus representantes legais, assim como o time jurídico dos governos, apresentaram um resumo de seus argumentos à Grande Câmara da corte --que só lida com os processos que levantem grandes questionamentos à interpretação da convenção dos direitos humanos. Foi a primeira vez que tantas nações precisaram se defender simultaneamente perante um tribunal.
Trinta e um países optaram por apresentarem seus argumentos em uma posição conjunta, conduzida pelo advogado britânico Sudhanshu Swaroop.
Essencialmente, os países têm concentrado seus esforços em convencer os magistrados sobre o que consideram uma falta de jurisdição da corte sobre a questão, além de reforçarem que não houve esgotamento das vias judiciais nacionais antes de recorrer à instância superior.
Os países também afirmam que os jovens não conseguiram comprovar de forma documental os problemas de saúde e os constrangimentos à vida normal que afirmaram ter no processo.
Os governos sustentam ainda que é impossível atribuir de forma direta a responsabilidade de cada uma das nações para o aquecimento global e os efeitos descritos na queixa dos portugueses.
Falando em nome do conjunto de países, Swaroop afirmou que os governos "entendem completamente a seriedade do aquecimento global", mas rebateu as acusações feitas pelos jovens.
O advogado britânico afirmou que os argumentos do processo poderiam fazer disparar o número de ações similares em diversas instâncias. "Abriria a porta para um influxo de reivindicações climáticas no âmbito da convenção [Europeia de Direitos Humanos], perante os tribunais nacionais e, em última análise, perante este próprio tribunal."
Swaroop destacou ainda que as mudanças pedidas pelos jovens "procuram impor obrigações abrangentes, com profundas repercussões sociais e econômicas".
Além da redução de emissões de gases-estufa dentro das fronteiras europeias, o grupo também busca restringir a poluição ligada ao que acontece fora do continente. Isso incluiria, entre outras coisas, a imposição de limites de importação de bens produzidos em contextos de emissão intensiva de carbono.
Assim como no processo, os representantes dos jovens destacaram na audiência a farta documentação científica que apresenta os danos provocados pelo aquecimento global.
"Nada disso é política. É ciência", disse a advogada Alison Macdonald, que citou os relatórios do IPCC (painel da ONU sobre mudanças climáticas) e as próprias declarações do secretário-geral da Organização das Nações Unidas, o português António Guterres.
Os governos dos países também enviaram respostas por escrito aos magistrados, onde o tom geral foi de minimizar o que é alegado pelos autores da ação.
Ambientalistas acusaram algumas das nações de negacionismo climático, devido às respostas apresentadas. Um dos posicionamentos mais criticados foi o da Grécia, que afirmou que "os efeitos das alterações climáticas, tal como registrados até agora, não parecem afetar diretamente a vida ou a saúde humana".
Nos últimos anos, os territórios gregos têm sido severamente afetados por grandes incêndios florestais, que, para especialistas, ganham ainda mais força com o aumento global de temperatura.
O problema dos incêndios, mas em Portugal, foi justamente a principal motivação dos portugueses para iniciar o processo.
Quatro dos jovens que apresentaram a queixa são da região de Leiria, no centro do país, um dos territórios mais afetadas pelas chamas no país. Em 2017, em meio a ondas de calor e uma temporada de seca, fogos na zona central portuguesa causaram a morte de mais de cem pessoas, além de diversos prejuízos à população.
No processo, os jovens alegam ter o direito à vida ameaçado pelos impactos de eventos climáticos agravados pelo aquecimento global.
A ação foi viabilizada através de um financiamento coletivo na internet, que já arrecadou mais de 140,4 mil libras (cerca de R$ 865 mil) e segue aceitando doações.
O grupo é auxiliado pela ONG britânica Glan (Global Legal Action Network). Do lado dos países, dezenas de profissionais, incluindo alguns dos mais caros especialistas em direito ambiental e dos direitos humanos, representavam os interesses dos governos.
Em entrevista à Folha de S.Paulo na semana passada, o advogado Gearóid Ó Cuinn, diretor da Glan, chamou o julgamento de "uma batalha de Davi contra Golias", em alusão à história bíblica que opõe um gigante e um ser humano.
A expectativa é de que o resultado final do julgamento seja conhecido entre 9 e 18 meses.
A ação é considerada estratégica pelos ambientalistas porque o Tribunal Europeu de Direitos Humanos tem o poder de fazer determinações vinculantes, obrigando os países a agirem concretamente para reduzir as emissões.
Diante da falta de progresso global para a redução das emissões, a via judicial tem sido cada vez mais procurada por ativistas ambientais.
Liderado pela pesquisadora brasileira Joana Setzer em parceria com Catherine Higham, um estudo do London School of Economics identificou 2.002 casos de litígio climático de 1986 ao começo de 2022.
Os últimos anos têm registrado um crescimento expressivo dessas representações. O número de processos dobrou desde 2015, e aproximadamente 20% do total de ações foram apresentadas de 2020 a 2022.