Agrotóxico banido na União Europeia dizima abelhas no Brasil

Por ALEXA SALOMÃO

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - Não importa a região, os recentes surtos que vitimaram abelhas em diferentes pontos do Brasil têm em comum, além da mortandade em massa, um mesmo produto, o fipronil.

Sintetizado nos anos de 1980, sua patente já expirou e pode ser produzido por qualquer empresa. O uso se tornou indiscriminado, relatam acadêmicos e técnicos agrícolas.

Os agrônomos contam que outros agrotóxicos, como inseticidas a base de nicotina, herbicidas e fungicidas, minam o organismo das abelhas de forma lenta, debilitando as funções físicas até a morte, o que reduz as colmeias ao longo do tempo.

O fipronil é diferente. A substância atua no sistema nervoso central dos insetos, provocando uma superexcitação nos músculos e nervos. É implacável como agente da morte aguda, afirma Ricardo Orsi, professor de veterinária da Unesp (Universidade Estadual Paulista).

"Inseticida sistêmico de ação prolongada e agressiva, hoje ele é usado em diferentes culturas, o que explica a ocorrência de contaminações de abelhas em vários pontos do Brasil", explica ele.

Formigas e cupins são os seus principais alvos, mas é ele aplicado contra o bicudo do algodão, a larva-alfinete no milho, a lagarta-elasmo na soja. Também tem usos domésticos. Está nos mata-moscas e em coleiras de cães e gatos contra pulgas e carrapatos.

Segundo levantamento da Folha de S.Paio, os exames mostraram que foi o fipronil que vitimou 100 milhões de abelhas no Mato Grosso, em junho, 80 milhões na Bahia e, em julho, e também, provocou, em janeiro, perdas em Minas Gerais.

Estudos contínuos no Mato Grosso do Sul identificaram associação crescente entre mortes em massa a substância. Em 2017, o fipronil estava em 30,5% das amostras. Em 2021, em 66,6%. No ano passado, foi detectado em 85,7% nas amostras.

Voltando um pouco no tempo, também foi responsável pela morte de 50 milhões de abelhas em Santa Catarina, em 2017, e pelo surto que dizimou quase 500 milhões no Rio Grande sul, entre outubro de 2018 e março de 2019.

Em todos os casos de mortandade em massa, não muito longe das colmeias havia alguma propriedade rural com cultivo em larga escala.

"Não tem lugar mais arriscado para uma abelha hoje do que do lado de uma fazenda, pois você nunca sabe que agrotóxicos vão usar, e como vão usar", afirma o apicultor José Arnildo Marquezin.

Foi preciso tempo para fazer a correlação entre fipronil e mortes agudas, afirma Aroni Sattle, professor aposentado da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). "Os surtos começaram no início dos anos 2000. As abelhas chegavam, eu examinava, e não encontrava nenhuma doença ou praga que justificasse a mortandade intensa, do dia para noite, então, passei a congelar amostras", diz.

Em 2018, ele enviou 37 delas para avaliação, e o fipronil apareceu como o agrotóxico preponderante. Avaliações de surtos posteriores foram na mesma linha. "Podemos afirmar que 60% a 70% das mortandades são provocadas por ele".

Técnicos afirmam que a pulverização por avião ou do trator, com risco ao trabalhador, é o principal problema, em especial quando feita na floração. A abelha infectada leva o veneno para colmeia e contamina o enxame.

"No caso mais recente aqui no Mato Grosso, não consideraram a temperatura e o vento recomendados para a aplicação e, naquele dia, ainda ocorreu inversão térmica, potencializando o efeito nocivo por um raio de 26 km [quilômetros]", diz a médica veterinária Erika do Nascimento, fiscal do Indea (Instituto de Defesa Agropecuária no estado).

A fiscalização percorreu 22 propriedades e localizou a substância numa fazenda de algodão. O produtor foi multado em R$ 225 mil.

Na Bahia, não se chegou aos culpados, mas a identificação do fipronil foi considerada um avanço, explica Marivanda Eloy, coordenadora da área de apicultura da Superintendência da Agricultura Familiar do estado.

"Na maioria dos casos, não sabemos o que aconteceu porque faltam laboratório e, recurso. Os apicultores são pequenos produtores que não podem pagar de R$ 800 a R$ a 1.000 para cada teste. Mas desta vez, conseguimos avaliar muitas amostras e encontramos fipronil até na cera, onde é difícil detectar resíduos."

O surto matou 1.500 enxames de 32 produtores que, organizados em cooperativas e associações, fizeram mutirão para seguir o protocolo previsto nesses casos: recolher as amostrar, fazer o BO (Boletim de Ocorrência), e queimar todo o mel e cera.

A contagem dos apicultores dimensiona perdas comerciais na produção do mel. No entanto, pouco se sabe sobre o que está ocorrendo com as abelhas silvestres, e qual o efeito na preservação da flora.

O Brasil tem 2.000 espécies de abelhas nativas, explica André Sezerino, pesquisador da Epagri (Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina).

"O pessoal acha que mel é o maior bem da abelha e que é bonitinho ela visitando as flores, mas o mel é uma parte mínima do que ela faz. O grande serviço é a polinização", afirma ele.

"Esse trabalho mantém o meio ambiente e o que comemos. Mais de 70% de todos alimentos que consumimos dependem da polinização das abelhas."

APICULTORES TENTAM MUDAR LEGISLAÇÃO

Como a frequência das mortes abelhas é crescente, apicultores estão mobilizados em vários estados na tentativa de restringir o fipronil.

Goiás aprovou em abril uma lei restringindo o uso da substância. A Assembleia de Minas Gerais também tem proposta semelhante. "Já faz dois anos que perco as abelhas, abaixo a cabeça e começo de novo, mas da última vez, eu dei o grito", afirma o apicultor Marcelo Ribeiro, que lidera o trabalho para convencer os deputados a aprovarem o projeto. "Parte do meu trabalho agora com apicultor é acabar com a carniça desse fipronil, que foi apontado como o principal responsável."

A referência em mudança legal é Santa Catarina, estado que tem uma câmara setorial do mel muito organizada.

Com isso, adotou um regulamento mais rígido, que proíbe a pulverização, aumenta a fiscalização e intensifica o diálogo com cooperativas e produtores para deter práticas erradas.

Uma vez, por exemplo, o Ministério Público identificou que um único agrônomo tinha emitido 1.450 receituários para o fipronil em duas semanas. Na verdade, havia deixado as folhas assinadas nos balcões das agropecuárias onde era responsável técnico. O produto saia de qualquer jeito, para qualquer um.

"Conseguimos reduzir em 70% as mortes agudas", afirma Ivanir Cella, presidente da Federação das Associações de Apicultores e Meliponicultores de Santa Catarina.

O setor, no entanto, quer uma discussão nacional para restringir ou mesmo proibir o fipronil. A comissão que trata de mortandade de abelhas dentro Câmara Setorial do Mel tem feito esforços em Brasília.

Em agostou, reiterou o pedido de revisão da legislação no Ibama (Ibama Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Foi encaminhado um ofício detalhando o avanço das mortes.

"Como o fipronil é uma molécula tóxica precisa sofrer avaliações", explica Rodrigo Zaluski, integrantes do grupo e professor da UFMT (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul).

"Ocorre que esse processo foi instalado em 2012 e já dura mais de dez anos sem uma conclusão. Pelo que identificamos, os inseticidas a base de nicotina podem ser revistos antes do fipronil, que já é comprovadamente mais tóxico."

Questionados, Ibama e Ministério da Agricultura não responderam até a publicação deste texto.

Nesse meio tempo, outros países já proibiram o fipronil, caso da Colômbia e Costa Rica.

A substância também foi vetada na União Europeia justamente pela alta letalidade em insetos que não são alvos. Também contribuiu para a decisão, a contaminação de ovos em ao menos 15 países na região, em 2017. Uma empresa utilizou fipronil na composição de um desinfetante aviário, comprometendo as galinhas.

O bloco europeu, porém, segue permitindo a exportação da substância para outros lugares. Ativistas têm pedido uma mudança nessa regra.

"É escandaloso ver que a União Europeia ainda permita que suas empresas químicas exportem o fipronil para países como o Brasil", afirma o ativista irlandês Eoin Dubsky, que atua pela ONG Eko.

A alemã Basf adquiriu o produto em nível global em 2003, e manteve a patente no Brasil até 2011, quando ele passou a ser comercializado por outras empresas. Sua marca, porém, permanece associada à substância.

Procurada pela reportagem, a empresa afirmou que tem acompanhado os acontecimentos e que identifica o uso indevido da substância. Ainda segundo ela, em nenhum dos casos recentes os produtos utilizados tinham sido produzidos ou comercializado pela Basf.