Violência de facções e polícia convive com luxo turístico no sul da Bahia

Por FABIO VICTOR

SUL DA BAHIA (FOLHAPRESS) - "Temos quatro destinos turísticos num só", gaba-se o secretário da Casa Civil de Porto Seguro, Josemar Siquara: centro e orla da própria cidade e os perfis "AAA de Trancoso", "europeu" de Arraial D'Ajuda e "pé na areia" de Caraívas -as denominações são dele.

Em 2022, quase um milhão de passageiros desembarcaram em voos domésticos em Porto Seguro. Uma quantidade semelhante chegou em ônibus e carros. Sem falar nos 14,5 mil aterrissados em 1.209 pousos de jatos particulares -outra característica do turismo "AAA de Trancoso", que tinha 28 casamentos de luxo programados para novembro.

Na orla da cidade, administrada pelo prefeito bolsonarista Jânio Natal (PL), sobressaem as "barracas de praia", apelido que confunde ao sugerir simplicidade a complexos gastronômicos e de lazer que reúnem milhares de clientes e movimentam milhões.

Duas das maiores barracas de Porto Seguro pertencem a políticos, que fundiram aos seus nomes o dos negócios: uma é do secretário municipal de Turismo, Paulo Cesar Onishi, o Paulinho Toa Toa -que acumula a pasta da Saúde-, outra é do ex-vice-prefeito Humberto Nascimento, o Beto Axé Moi. Há mais de uma década, os estabelecimentos erguidos em terras da União enfrentam um imbróglio com a Justiça Federal, mas funcionam normalmente.

Motivo de orgulho local, o turismo representa 70% da economia de Porto Seguro, município em franco crescimento, com 168,3 mil habitantes segundo o último Censo. Mas é ao mesmo tempo um dos motores do tráfico de drogas, da proliferação de facções e da consequente escalada de violência -potencializada por conflitos fundiários.

A cidade é a mais populosa da região da Costa do Descobrimento, cuja média de mortes violentas intencionais em 2022 foi de 57,7 por 100 mil habitantes, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O índice é mais que o dobro da taxa nacional (23,3) e está acima da média da Bahia (47,1) do mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública (dados de 2022).

O mesmo ocorre em relação à letalidade policial, cujo índice (13,7 por 100 mil habitantes) supera em mais de quatro vezes a média nacional (3,2) e é maior também que a média baiana (10,4). O estado, administrado por Jerônimo Rodrigues (PT), teve em 2022 o maior número de mortes violentas do Brasil, e sua polícia superou a do Rio como a que mais mata no país.

Porto Seguro não está entre as mais violentas da Costa do Descobrimento -Eunápolis, Itabela e Cabrália encabeçam o ranking. Mas, além de ter tido o maior número absoluto de homicídios (68), registrou uma taxa de mortes intencionais por 100 mil habitantes de 40,5%, bem acima da média nacional.

Em setembro passado, 13 pessoas foram mortas pela polícia em três dias na região, em circunstâncias semelhantes, pela versão oficial: troca de tiros com "marginais homiziados", nas palavras do comandante do 8º Batalhão da Polícia Militar de Porto Seguro, tenente-coronel Alexandre Costa de Souza.

Parte das vítimas morava no bairro do Baianão, uma antiga ocupação urbanizada na parte alta de Porto Seguro. Imenso, o complexo abriga aproximadamente metade da população da cidade, inclusive a maioria dos funcionários do turismo, e é base de uma das maiores facções da região, a Mercado do Povo Atitude.

Percorrer o Baianão é varar uma profusão de vielas coalhadas de pequenos comércios --sobretudo mercadinhos, barbearias e lojas de artigos para celular--, igrejas evangélicas e pontos de mototáxi.

Foi numa dessas vielas que Eliabe Jorge Lage assistiu a seu filho Ricardo ser assassinado pela polícia em dezembro de 2021. "Eles chegaram na minha casa, cercaram tudo, não explicaram nada, tava todo mundo dormindo. Meu filho simplesmente saiu correndo, pulando pelas casas vizinhas."

Depois do crime, jogaram o corpo na viatura "como se fosse um bicho, um animal morto", relembra a servidora municipal, enquanto aponta para a certidão de óbito. "E eles colocaram aqui que foi em via pública... e disseram que houve troca de tiros. Mas mataram meu filho desarmado e dentro de casa."

Para não esquecer, Eliabe leva consigo na bolsa a certidão de óbito e duas cápsulas de fuzil que recolheu da calçada na manhã trágica. Ricardo tinha 27 anos, e a companheira dele estava grávida. Teve envolvimento com tráfico de drogas, reconhece a mãe, mas à época não tinha mais, afirma. "Ele estava só e sem arma, poderiam ter prendido, mas preferiram assassinar."

São imagens que atormentam muitas mães e que fazem, como em muitos bairros pobres do país, com que os moradores confiem mais nas facções criminosas do que na polícia. Ou que busquem assistência nas raras iniciativas sociais, como da ONG Associação Arte e Cultura do Baianão, que oferece atividades culturais e esportivas para crianças e cursos de capacitação para adultos.

"Vi muita mãe sofrendo vendo seus filhos sendo abatidos feito frangos. Hoje o medo impera no Baianão. É uma situação derivada da falta de investimentos do poder público", afirma o pedagogo Tiago Maciel, diretor da associação.

Na vizinha Santa Cruz Cabrália, também um polo de turismo e onde foi celebrada a primeira missa católica no Brasil, as taxas de homicídio e letalidade policial no ano passado foram piores do que em Porto Seguro. Ali, a violência está entranhada com a questão indígena.

Uma das maiores aldeias urbanas do país, a Terra Indígena (TI) Coroa Vermelha abriga cerca de 7.000 indígenas e há anos também enfrenta uma escalada do tráfico. Em outubro, a morte de um indígena apontado como um dos líderes de uma facção levou medo à região. Moradores relataram que um toque de recolher imposto por criminosos -a polícia nega.

Líderes indígenas atribuem a criminalidade nas aldeias à explosão do turismo e da especulação imobiliária -processo da qual dizem estar alijados. "Hoje o que mais se fala na região é a questão dos empresários, redes de hotelaria, de restaurantes, barracas. E às vezes o indígena ali é impedido de fazer a sua oca para poder também se tornar um comerciante. Isso causa impacto", afirma Syratã Pataxó, presidente do Conselho de Caciques da TI Coroa Vermelha.

Segundo ele, os jovens do território estão urbanizados e mais suscetíveis a serem recrutados pelo crime. "Aí as facções entram na terra indígena, sentem segurança por a Polícia Federal não atuar como deveria. Acaba se tornando uma terra sem dono."

Em meados dos anos 2000, líderes locais criaram uma Guarda Indígena para patrulhar o território, mas a Justiça Federal determinou que essa deve ser uma atribuição do Estado. Com as limitações da Polícia Federal, e o aumento da criminalidade, a PM foi autorizada a patrulhar as aldeias urbanizadas.

O delegado Roberto Junior, coordenador da Polícia Civil para a região, afirma que criminosos com ascendência indígena, mas sem ligação com os líderes pataxós, "se autointitulam indígenas" por ver nisso uma proteção legal, como se autodeclaração trouxesse imunidade.

Ele afirma que a Polícia Civil tem atuado em todas as áreas de influência das facções e relativiza a gravidade da situação "O caos não existe nem no Baianão nem em Coroa Vermelha."

O comandante da PM na região, tenente-coronel Alexandre Souza, tem discurso semelhante. "Índio bandido é bandido, índio bom é bom."

Souza afirma que os índices de homicídios na região estão em queda, depois de um pico nos primeiros anos da década passada, e considera alarmismo as críticas de moradores.

Tanto Souza quanto o secretário Josemar Siquara, de Porto Seguro, afirmam que um atenuante para a violência nas áreas dos condomínios e hotéis é uma extensa rede de segurança privada. A reportagem solicitou à PF -responsável por autorizar e fiscalizar a atividade no país- os números relativos à segurança privada na Bahia, mas a instituição não os forneceu.

A Polícia Civil elencou ações pontuais nas áreas mais críticas, casos da Operação Paz, do Ministério da Justiça, em Eunápolis, e a futura Operação Verão, de reforço do policiamento no litoral Sul. O município também está incluído no Pronasci 2 (Programa Nacional de Segurança Pública), do governo federal.

Embora o Baianão esteja a poucos quilômetros do centro de Porto Seguro, o secretário Siquara trata as mortes ali como "casos isolados, mais periféricos". "Graças a Deus, não temos maiores ocorrências relacionadas ao turismo. Por mais que ocorra violência, graças a Deus ela não afetou nosso carro-chefe."