Massacre do Paralelo 11 completa 60 anos com falta de reparação a indígenas

Por LUCAS LACERDA

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O segundo volume do relatório da CNV (Comissão Nacional da Verdade) apontou, em dezembro de 2014, que ao menos 8.300 indígenas haviam sido mortos durante a ditadura militar. No topo da lista, estão 3.500 cintas-largas, povo que vive entre os estados de Rondônia e Mato Grosso, no sudoeste da Amazônia.

De novembro de 1963 ?pouco antes, portanto, do golpe de 1964?, o caso ganhou destaque no relatório por sua brutalidade. O massacre do Paralelo 11, como ficou conhecido, levou a um total incerto de mortes. As menções à época e em documentos posteriores indicam de nove a 20 vítimas.

A matança, porém, não começou nem parou por aí. Ataques anteriores, como o uso de dinamite jogada de aviões, e outros posteriores deixaram uma quantidade de vítimas estimada na casa de 3.500.

A apuração foi dificultada, segundo o Relatório Figueiredo, de 1967, por causa do envolvimento de grande parte do extinto SPI (Serviço de Proteção aos Índios) em negócios ilegais de exploração de terras indígenas. As violações continuariam pela ditadura, com notícias de massacres até os anos 1980.

As lacunas, tanto do número exato de vítimas quanto da responsabilização ou da caracterização do crime como genocídio, prejudicam a construção de uma memória mais precisa, avaliam especialistas ouvidos pela reportagem.

Os pedidos de investigação são antigos. Nota publicada no jornal Folha de S.Paulo em dezembro de 1963, por exemplo, perguntava quando e quem iria apurar o noticiado massacre de cintas-largas com o uso de metralhadoras.

No processo sobre essa matança, ocorrida em uma aldeia localizada no paralelo 11 Sul ?o 11º abaixo da linha do Equador?, foram citados também ataques anteriores realizados com dinamite, lançada de avião sobre aldeias.

A expedição de novembro de 1963, com seis homens, foi planejada por Francisco Amorim de Brito, da empresa de seringalistas Arruda, Junqueira e Cia. Ltda., e comandada no território, próximo ao rio Juruena, pelo pistoleiro Chico Luís. Era uma das muitas na época, segundo a CNV, que buscavam minérios para garimpo e limpavam o território ?o que incluía deslocamento forçado e assassinato? para a exploração.

Após caminhar na mata por semanas, o grupo encontrou a aldeia em uma noite de novembro. Segundo o depoimento do seringueiro Ataíde Pereira dos Santos ao padre jesuíta Edgar Schmidt, registrado pela revista do Sunday Times em fevereiro de 1969, o grupo esperou que amanhecesse para começar o ataque.

Os indígenas morreram por disparos de pistola e metralhadora, mas uma mulher, que não havia sido atingida, estava parada com o filho no colo. A criança levou um tiro na cabeça, e a mulher foi pendurada de cabeça para baixo, pelos pés, segundo os relatos. O corpo, com as pernas abertas, foi partido ao meio a golpes de facão, atribuídos por Ataíde a Chico Luís.

Os ataques perpetrados contra diferentes povos indígenas não envolviam apenas confrontos diretos, mas a distribuição de alimentos envenenados, o contágio proposital de doenças, como varíola, tuberculose e gripe, e crimes sexuais.

Esses crimes não foram considerados genocídio não pela falta de tipo penal, diz o procurador Luciano Mariz Maia. "A lei 2.889, de 1953, já previa no Brasil, à época, que isso fosse qualificado como genocídio."

Ele foi o responsável, há 30 anos, pela única condenação no Brasil pelo crime de genocídio, no caso do assassinato de um grupo de indígenas yanomamis em 1993, conhecido como massacre de Haximu.

Para ele, a circunstância política se assemelha a questões recentes do governo de Jair Bolsonaro (PL). "Há um ano [antes de operações contra garimpo na Terra Indígena Yanomami no começo de 2023], vínhamos testemunhando o que estava acontecendo com os indígenas yanomamis", diz.

"Era a mesma circunstância, com envolvimento das estruturas da Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas], do Ministério da Justiça, da Presidência estimulando não indígenas em terra indígena levando destruição de vegetação, doença e poluição, e as pessoas têm receio de chamar de genocídio."

Para a membro da Comissão Arns Eloísa Machado, o relatório produzido pelo procurador federal Jader Figueiredo, de 1967, comprova que o caso dos cintas-largas foi um crime de genocídio.

No documento, fica evidente a intenção de destruir, com dolo especial, e promover ataques relacionados à condição étnica, religiosa, racial ou de nacionalidade, afirma Machado, que é professora da Fundação Getúlio Vargas.

O relatório de Figueiredo veio a público em 1968, quando ele convocou a imprensa para uma entrevista coletiva em que foram apresentados os resultados, que chocaram o mundo. O documento foi fruto de quase 60 dias percorrendo postos do SPI ?que seria substituído pela Funai? e das investigações de um conjunto de 134 funcionários envolvidos em crimes e desvios, segundo reportagem da Folha à época.

Além da caracterização do crime, falta até mesmo uma investigação maior do ocorrido até hoje, diz o ex-presidente da Funai Carlos Marés, professor de direito na PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná). "Ainda falta contar melhor a história desse período. É um problema que começa a aparecer mais pelos anos 1970. Fica essa lacuna, ainda tem muita mortandade encoberta."

Único julgado pelo caso, o seringueiro Ramiro Costa tinha 62 anos, malária e nenhum dinheiro em 1975, enquanto esperava, preso, pela decisão do caso mais de uma década depois do massacre. Não se esperava que ele sobrevivesse para cumprir a pena.

Reportagem da Folha daquele ano também citava que Ataíde acusava o seringalista Antônio Mendes Junqueira, que, como o sócio, Helio Arruda, nunca foi julgado pelo crime.

Em 1969, a ditadura criou o Parque Indígena Aripuanã, que se estendia até a fronteira com o então território federal de Roraima. A demarcação da Terra Indígena Aripuanã seria homologada em 1989 pelo presidente José Sarney.

No ano passado, o Ministério Público Federal em Rondônia propôs uma ação de reparação histórica ao povo cinta-larga pelo massacre e responsabilização da União, da Funai e da Arruda, Junqueira e Cia. Ltda. Em nota, o órgão afirmou que ainda tentava encontrar a empresa para a citação no processo.

Em 2014, a CNV recomendou a criação de uma comissão para apurar as violações cometidas contra povos indígenas durante o período da ditadura. Em maio deste ano, a atual presidente da Funai, Joenia Wapichana, ainda defendia que o grupo fosse criado.