Aos 470 anos, São Paulo tem disparidade extrema na ocupação dos bairros
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Um trajeto de 50 quilômetros separa o coração da cidade de São Paulo, na Sé, da área de mata ao redor da estação férrea de Marsilac. Um bairro é repleto de prédios e tem quase metade de suas quadras dominada pelo comércio, o outro tem 99% de seu território coberto por vegetação.
Morar na capital paulista pode ter significados completamente diferentes, a depender do endereço. As disparidades são visíveis no traçado das ruas, na presença de serviços públicos, na distribuição dos empregos, na quantidade de árvores.
Um mapeamento com base no Cadastro de Contribuintes Mobiliários, da prefeitura, dá uma ideia da diversidade urbana. Ele mostra os distritos com maior proporção de residências, comércios, indústrias, áreas de uso público, vegetação e até aquelas que não têm atividade predominante --as áreas de uso misto.
Do Brás --que tem uma das maiores concentrações de comércio na cidade, mas apenas 7% de cobertura vegetal-- a Socorro, à beira da represa Guarapiranga, com mais de 30% de sua área coberta por água, são incontáveis diferenças.
Zona leste tem bairro com maior proporção de residências
O distrito da Ponte Rasa, na zona leste, tem a maior concentração de residências em toda a cidade (70%). À primeira vista, parece um bairro que se manteve preservado em contraste com o entorno, enquanto áreas com mais acesso a transporte --as vizinhas Penha e Ermelino Matarazzo, por exemplo-- teriam desenvolvido mais comércio e indústria.
A moradora Clélia Herrera Garcia, 69, sabe que isso não é totalmente verdade. Ela testemunhou uma transformação drástica nas últimas seis décadas. A Ponte Rasa tinha fazendas e era tomada por mato, não havia luz elétrica, as ruas eram de terra e só havia água de poço na década de 1960.
Antes da iluminação pública, a eletricidade chegou ao bairro de forma clandestina: um morador puxou um "gato" da fiação que passava na antiga estrada de São Miguel, e depois fez a ligação com os vizinhos.
"Estudei do 1º ao 4º ano numa escolinha de madeira que tinha três salas de aula e uma sala dos professores e da diretora. A escola toda tinha quatro cômodos. Quando o governo resolveu construir outra escola, eu e mais uns dez alunos fomos a pé levando as carteiras em cima da cabeça", ela conta.
Comércio segue na Sé e no Brás, mas tem novas centralidades
Os bairros da zona leste cresceram ao redor das estradas que conectavam o centro paulistano ao Rio de Janeiro. Por ali passa uma das ferrovias mais antigas do Brasil (que deu origem à linha 11-coral da CPTM), mas também a estrada velha de Mogi das Cruzes e a antiga estrada de São Miguel.
Hoje, distritos centrais onde a presença do comércio é histórica -como Brás, República e Sé- seguem com as maiores concentrações dessa atividade na cidade. Mas os centros comerciais se pulverizaram na cidade, chegando a todas as regiões. A zona leste é um dos maiores exemplos dessa mudança.
A urbanista Andréa Tourinho, representante do IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil) no Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo), diz que foi o avanço das comunicações e do transporte que fizeram com que bairros residenciais atraíssem mais serviços.
"É por isso que, nesses lugares, o comércio se concentra dessa forma linear, em grandes corredores", explica Tourinho. "Até a década 1980, só se pagava conta luz no centro da cidade. Eu mesma me lembro de ficar horas dentro de um carro com minha mãe para ir ao centro. Na década de 1980 esse sistema de centralidade se rompe justamente por causa das tecnologias."
Para ela, o futuro urbanístico do centro histórico da cidade ainda é uma incógnita, após ser esvaziado pela pulverização do comércio para outras áreas e pela crise da pandemia de Covid-19. A região tem recebido uma série de incentivos fiscais para reforma de imóveis.
A intenção da prefeitura é aumentar a oferta de moradia no centro histórico, especialmente através do PIU (Projeto de Intervenção Urbana) Central, uma lei que prevê a cobrança de taxas diferenciadas pelas construtoras, além de incentivos a retrofits. A meta é atrair 220 mil novos moradores.
Áreas como República e Santa Cecília têm atraído mais investimentos do que o chamado triângulo histórico de São Paulo, na Sé. "Ainda tenho um pouco de duvidas do que pode acontecer nessa área mais central", diz Tourinho. "Está difícil essa transformação porque as últimas gestões falam como se as reformas físicas darão conta dos problemas do centro, que são sociais."
Indústria fica nas bordas e em distritos tradicionais
O comércio não foi a única atividade a se espalhar pelo território. O mesmo ocorreu com a indústria e outras atividades.
Quem passa pelas ruas do Cambuci, na região central, talvez não imagine que ali está um dos bairros de maior concentração de indústrias da cidade. As fachadas das casas dão a impressão de que se está diante de residências.
Mas dentro dessas casas há microindústrias, que trabalham com pequenas máquinas se comparadas aos grandes chãos de fábrica --é um cenário muito diferente do bairro do Jaguaré, que também é um dos maiores distritos industriais da cidade.
A Mooca, que por décadas foi um dos principais bairros industriais da cidade, ainda tem uma das maiores proporções desse uso. Mas hoje é uma área cuja transformação deve se intensificar nos próximos anos: o bairro está na área de influência da nova Operação Urbana Tamanduateí, que pretende instalar parques e mais moradia na região.
"Por causa da fragmentação, qualquer lugarzinho pode se tornar uma unidade produtiva. Aparentemente nós não temos mais tantos lugares com grandes plantas industriais", diz a urbanista Nadia Somekh, professora emérita do Mackenzie e pesquisadora.