Sob temor de abandono, novo achado em obra do metrô dá pista sobre origem do Bixiga

Por CLAYTON CASTELANI

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Parte de uma construção encontrada na escavação na região central de São Paulo pode trazer pistas sobre a expulsão dos descendentes de pessoas escravizadas que possivelmente ocuparam aquele território antes da expansão da cidade.

A conservação desses vestígios históricos, porém, preocupa técnicos do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), segundo relatório de vistoria do órgão federal.

A escavação para a construção da estação da linha-6 laranja, obra da gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) que ligará a Brasilândia (zona norte) à Liberdade (central), fica nos arredores da praça 14 Bis, no distrito Bela Vista, a cerca de 1 km da avenida Paulista. A obra está no terreno onde existia a sede da escola de samba Vai-Vai, que foi desapropriado.

Peças desenterradas ali podem confirmar relatos sobre a existência de um raro quilombo urbano no país, localizado às margens do antigo córrego Saracura. Em geral, são itens de vestuário e utensílios comuns aos rituais das religiões de matriz africana.

Mas duas grandes estruturas de tijolinhos recentemente encontradas nas escavações, tratadas neste momento como prováveis vestígios da canalização do córrego em meados do século 20, podem dizer mais sobre a real localização do Quilombo Saracura e também como a urbanização pode ter forçado a saída dos descendentes dos quilombolas que podem ter chegado ao local no século 19.

É uma avaliação preliminar, que se faz com base em outras investigações históricas que mostram que obras públicas de infraestrutura estão regularmente associadas à expulsão de populações, explica o historiador e geógrafo Danilo Nunes, superintendente do Iphan no estado de São Paulo.

Nunes pondera, no entanto, que os indícios encontrados no local ainda não comprovam a existência de um quilombo.

A maneira como esses achados estão sendo conservados, porém, desperta preocupação na comunidade local que tenta evitar o apagamento da memória da população preta do Bixiga, bairro mais lembrado pela imigração Italiana.

Relatório de novembro de uma vistoria de arqueólogos do próprio Iphan reportou problemas em relação à preservação das estruturas por parte da Construtora Acciona, que realiza a escavação da estação.

Já parcialmente desenterradas desde agosto do ano passado, as estruturas foram encontradas cobertas com areia e por uma manta geotêxtil, tecido normalmente utilizado para drenar o solo. O parecer do Iphan diz que esses procedimentos não foram autorizados.

O mesmo documento descreve que a fiscalização realizada em outubro verificou "exposição do solo de interesse arqueológico e o estado de total abandono do Patrimônio da União".

Concessionária que irá operar e explorar economicamente a linha-6 laranja, a Linha Uni contratou uma empresa especializada em arqueologia para trabalhar no sítio, a consultoria A Lasca.

Segundo a consultoria, "não é cabível a alegação de que o patrimônio da União se encontrava em estado de total abandono", já que a área se encontra sob monitoramento arqueológico ininterrupto.

Ainda de acordo com a A Lasca, a instalação da manta na superfície do sítio é procedimento necessário para preservar o sítio em período de fortes chuvas. As justificativas foram incluídas no processo eletrônico do sítio.

Para Luciana Araújo, integrante do movimento Mobiliza Saracura/Vai-Vai, poderia haver mais transparência e inclusão da comunidade no processo, a fim de diminuir as tensões entre a concessionária e a comunidade local.

Apesar dos avanços no diálogo com o Iphan desde que o órgão saiu das mãos da gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), como a formação de uma comissão que inclui moradores para acompanhar a obra, Araújo reclama da lentidão nesse progresso.

"No caso, a comissão, que foi constituída só em dezembro [de 2023], teve apenas duas reuniões com participação do Metrô e do Governo do Estado, pode sanar essa dificuldade de acompanhamento que vínhamos encontrando desde junho de 2022", comenta Araújo.

Uma das principais queixas da comunidade é sobre a demora da consultoria em disponibilizar imagens das centenas de itens encontrados no processo eletrônico público sobre a exploração do sítio.

Já a A Lasca argumenta que o trabalho de higienização das peças e a rigorosa investigação científica necessária para a classificação dos itens demandam tempo.

O Iphan afirma ter estabelecido novos procedimentos desde a fiscalização e que avançou no diálogo com a comunidade, justamente pela formação de uma comissão com moradores da vizinhança.

Nunes, superintendente da autarquia em São Paulo, afirma concordar que o trabalho arqueológico é naturalmente lento e argumenta que ele ocorre no ritmo esperado.

Para o superintendente, uma etapa mais desafiadora da escavação deve ocorrer a partir desses novos achados.

Arqueólogos e engenheiros terão de lidar com a preservação da estrutura que está a quatro metros de profundidade em um terreno sujeito a alagamento e sob risco de desmoronamento devido à tensão que os prédios no entorno exercem sobre o solo.

"Tem muito prédio [no entorno], para conseguir ir muito fundo são necessários procedimentos que até saem do campo da arqueologia e entram no campo da engenharia da obra", diz.

Em nota, a Linha Uni, responsável pela obra, afirma que "desde o início das escavações, todas as medidas necessárias para garantir a integridade do patrimônio arqueológico foram tomadas", diz.

A concessionária conclui dizendo que "o compromisso de todas as partes envolvidas é assegurar que as atividades de construção sejam realizadas de forma responsável e em estrita conformidade com as regulamentações do Iphan".