Como era o baile Gala Gay, que exaltava a liberdade sexual e atraía curiosos no Carnaval
RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - Nos anos 1980, no período mais libertino e festivo do ano, as plumas e os paetês não estavam restritos às mulheres que desfilavam no sambódromo do Rio. O baile Gala Gay, realizado sempre na terça-feira de Carnaval, entre o último dia de desfiles e a Quarta-Feira de Cinzas, encerrava os festejos, sendo a maior representação da diversidade na folia. O evento era transmitido ao vivo para todo o país madrugada adentro, rendendo picos de audiência.
A premissa do baile era simples. Não havia dress code, mas a maioria ia fantasiado. Além de transsexuais montadíssimas, muitos estrangeiros e simpatizantes iam mascarados, mesclando discrição com adereço. Todos caiam na folia.
Na TV, as imagens do interior do Scala (extinta casa noturna que ficava no Leblon, na zona sul do Rio, e pertencia ao empresário espanhol Chico Recarey) mostravam um público eufórico, dançando ao som de marchinhas e frevo. Elas eram intercaladas com as externas, exibindo a entrada de drag queens e transgêneros.
O Gala Gay fez sua estreia em 1982 no Canecão, em Botafogo. O sucesso foi estrondoso, com cerca de 5.400 pessoas, o que rendeu mais alguns anos na mítica casa de espetáculos. Em 1985 (com direito a repeteco anos depois), o baile também teve uma breve passagem pela discoteca Help, localizada em Copacabana, antes de fixar-se no Scala.
Apesar da alcunha, a presença massiva era de mulheres trans. Presença ilustre no baile, a drag queen argentina Isabelita dos Patins protagonizou uma das aparições mais gloriosas a bordo de uma limousine como Rainha do Gala Gay em 1996.
Em outra ocasião o veículo também foi especial. "Era um carro de 1900 e pouco, mas ele só andava um quarteirão, então ele foi rebocado até a esquina do Scala, aí entrei nele e cheguei nesse tipo de calhambeque, foi um escândalo", lembra, aos risos.
A drag queen guarda boas memórias dos tempos áureos do baile. "Era muito chique, a gente tinha um camarote com tudo do bom, tenho uma eterna saudade da Rogéria, da Elke Maravilha... A gente viveu realmente os anos dourados, coisas que não voltarão mais", lamenta.
CAPA DE REVISTA
No tapete vermelho do baile, as trans mais chamativas pleiteavam alguns minutos de fama diante das câmeras. Esse momento poderia render uma foto em alguma revista. "Nós íamos à banca de jornal ver as revistas Manchete e Fatos & Fotos para ver se a gente havia saído nelas, era um babado", conta a empresária trans Kassandra Taylor, 57, frequentadora assídua.
"As bibas seguravam dinheiro o ano inteiro para comprar o convite e ir gloriosa ao baile", relembra ela, que foi campeã do concurso Pantera do Carnaval do Rio de Janeiro em 1987. Na época, havia inclusive uma edição "extra gay" da Fatos & Fotos. Isabelita dos Patins estampou a última capa, em 2000, ao lado de Roberta Close, Lola Batalhão (1956-2014) e Tamara Bonecker.
Mas não era apenas a comunidade LGBTQIA+ que comparecia ao Gala. Personalidades "hétero" também marcavam presença, como Elza Soares (1930-2022), que se apresentou no baile, e a atriz Lady Francisco (1935-2019), entre outros famosos. "Ali você encontrava Chiquinho Scarpa, Claudia Raia, muitos artistas", enumera. "Às vezes, eu ia com a Roberta [Close], e saíamos na metade do baile para comer em alguma lanchonete (risos)."
PICOS DE AUDIÊNCIA
Na TV, as transmissões do baile geralmente começavam após a meia-noite e se arrastavam até 4h da manhã. Um time de repórteres, entre os quais se destacaram Monique Evans e Otávio Mesquita, conduziam entrevistas divertidas com os foliões. Além deles, passaram pelo Gala nomes como Léo Áquilla, o ator Gerson Brenner e a ex-modelo Jane Bezerra, entre outras figuras.
A disputa pelo ibope era acirrada, e não era incomum vencer a Globo. Mesquita, que cobriu o baile pela extinta Manchete, pela Band e pelo SBT, relembra a proeza: "Era muito divertido, os gays me adoram, sempre tive muito carinho e respeito por eles, e ganhávamos da Globo, uma vez deu 22 pontos".
Com o sucesso do baile televisionado, famílias se concentravam na rua do Scala no Leblon para ver de perto a chegada de personalidades anônimas e famosas, em trajes sumários ou luxuosos. Mas nem sempre as coisas saiam como o esperado. Em uma ocasião uma mulher trans irritou-se ao ser indagada se era operada, deixando Mesquita numa saia justa ao vivo.
Símbolo do Carnaval, Monique Evans cobriu várias edições, esbanjando irreverência, mas não demonstra saudosismo. Ela não atendeu ao pedido da reportagem para dar um depoimento sobre o baile. Ao site O Fuxico, em 2012, a ex-modelo e apresentadora declarou que, nos últimos anos, o evento havia ficado chato, e caído na mesmice.
Mesquita, por outro lado, se apega às lembranças positivas e conta que até hoje é lembrado pela cobertura. Recentemente, ele estava em um restaurante no Rio e foi abordado por um senhor que havia sido entrevistado por ele no evento.
"Foi lá que explodi na TV. Ninguém queria fazer por ser um baile gay, fui o único repórter a topar, e tenho saudades", afirma ele, que neste ano completa 40 anos de carreira. "Se estou onde estou hoje, devo a todos os gays que brincaram junto comigo."
CARNAVAL PROIBIDÃO?
Outros bailes mais "caretas" (héteros) tentaram rivalizar com o Gala Gay na TV, como o Baile do Vermelho e Preto. Na guerra pela audiência, em 1988, Manchete e Band apelaram para a sensualidade extrema na transmissão. A repercussão negativa resultou em uma advertência do Congresso Nacional, e ambas tiveram que recuar na exibição das cenas mais libidinosas nos anos seguintes.
O pós-baile também rendia, com a venda de fitas VHS com títulos sugestivos como "Carnaval Proibido". Com a promessa de mostrar "o que a TV não exibia", o produto não passava de um caça níquel, com cenas menos censuradas de homens e mulheres, cis ou trans, se divertindo, numa era em que o erotismo não estava à distância de um clique.
Porém, se, para os espectadores, o Gala Gay simbolizava uma liberdade carnal, onde tudo parecia permitido e nada proibido, quem viu de perto, afirma que não era aquela loucura toda. Os antigos frequentadores, por exemplo, desmistificam qualquer ligação com sexo e drogas.
"Nunca presenciei nada, o pessoal ali queria brincar", pontua Mesquita. "Naquela época, não vi ninguém se drogando. Se tivesse visto, falaria. Hoje em dia as coisas estão bem piores, mas ali era mais diversão."
Taylor também diz que o teor das histórias do baile não é tão impublicável quanto muitos imaginam. "Quem assistia pela TV, pensava ser uma putaria, mas não era assim. Nem briga tinha e, quanto às drogas, tinha uma inspeção antes de entrar", afirma.
Questionada se o sexo rolava solto no salão, ela esclarece: "Transar ali era impossível, tinha muita gente tumultuado, filas para entrar nos banheiros, não havia sacanagem". "A gente conhecia alguém e ia para a casa da pessoa", explica.
O ÚLTIMO GALA GAY
Ao longo do tempo, o Gala Gay recebeu outros nomes, como Grande Gala G (GGG) e Scala Gay. As diferentes denominações envolveram atritos quanto aos direitos da palavra "gay". Um sujeito havia registrado o termo e, logo depois, exigiu uma soma pelo uso.
O consagrado produtor musical Guilherme Araújo (1936-2007) rejeitou o pedido e, como solução, o renomeou de Grande Gala G. Além de idealizador do baile, ele também foi o responsável pela sua revitalização, quando o evento, já com outro nome e propósito, estava em decadência na região central da cidade.
O Scala Rio fechou as portas do endereço no Leblon em 2010, e logo migrou para o centro do Rio, no subsolo de um edifício comercial. Foram os últimos suspiros do tradicional baile, cuja derradeira edição ocorreu em 2019. Era o fim de um dos bailes mais coloridos do Carnaval carioca.
Em virtude da pandemia, a casa de espetáculos encerrou suas atividades em 2020. Procurada pela reportagem, a assessoria do Scala Rio disse que a empresa está fazendo orçamento para reforma ou mesmo reabertura em outro espaço, mas sem previsão de quando isso ocorrerá. Por ora, também não há planos concretos de que o Gala Gay seja retomado.
Sobre a última festa, o produtor Ronni Silva, responsável pela organização, guarda fortes memórias. "Chovia muito, o tapete vermelho estava submerso, e o povo esperando para entrar; ninguém arredou o pé", descreve. "Acho que, no fundo, sabiam que seria o último."