Filhos separados dos pais com hanseníase lutam por reparação
Por Tâmara Freire - Repórter da Agência Brasil
Filhos separados dos pais com hanseníase lutam por reparaçãoAgência Brasil
Rita de Cássia Barbosa tinha apenas 20 anos quando sua filha Giovana nasceu. Depois de um parto longo e difícil, recebeu do médico uma notícia aterradora: não poderia sequer ver a filha, muito menos pegá-la no colo ou amamentá-la. Um pequeno consolo veio pelas mãos de uma enfermeira: "Quando o médico saiu, ela chegou com a Giovana bem pertinho de mim. Ah, quando eu consegui vê-la, meu Deus do céu. Eu chorei muito, muito, muito..." lembra Rita.
Poucos meses antes, em uma consulta de pré-Natal, Rita tinha sido diagnosticada com hanseníase, e apenas um dia depois da consulta, foi internada sem previsão de saída, no Hospital Curupaiti, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, à época uma das maiores colônias de hanseníase do país. Em 1974, quando Giovana nasceu, a lei ordenava que os bebês nascidos nas colônias fossem imediatamente separados das mães, para evitar a contaminação. Giovana foi enviada a um educandário.
"O governo foi covarde com todos nós daquela época, porque já tinham descoberto o tratamento para a doença, que evita a transmissão. Mesmo assim manteve a gente isolado porque quis manter. Eu não precisava, e outras mães não precisavam, ficar separadas dos filhos. Mas a sociedade não nos aceitava", Rita diz, indignada.
Ela só voltou a ver a filha depois de seis anos, quando recebeu autorização para sair da colônia e ir a um posto de saúde, e decidiu usar uma peruca e roupas diferentes, para se passar pela irmã e poder entrar no educandário.
"Eu cheguei perto dela e falei assim: 'Oi Giovana, tudo bem?' Aí, ela olhou pra mim e perguntou: 'Você é minha tia Ana?'. Eu olhei pros lados, vi que não tinha ninguém e falei: 'Eu vou te contar um segredo, mas você não pode contar para ninguém. Eu sou a sua mãe'. Ela deu um grito! Eu fui de novo outras vezes, mas fiquei com medo de ser descoberta e acontecer alguma coisa com ela. Aí, eu parei", conta Rita de Cássia.
O reencontro definitivo demorou mais oito anos, quando a colônia começou a permitir que crianças entrassem no local. Giovana, então, pôde viver com a mãe.
Segregação
Por muito tempo, a hanseníase foi chamada de lepra, uma doença cercada de estigma. Ela é causada pela bactéria Mycobacterium leprae, também conhecida como bacilo de Hansen, e afeta a pele e os nervos, provocando manchas, dormência, alteração ou perda da sensibilidade e, em casos mais graves, pode levar à necrose de tecidos, amputação dos membros e perda permanente da mobilidade. Mas a doença tem cura e deixa de ser transmissível logo no início do tratamento, que é disponibilizado gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde.
Ao longo de seis décadas, a política de tratamento da hanseníase no Brasil envolvia o isolamento dos pacientes em enormes hospitais-colônias, como o Curupaiti, sem qualquer previsão de alta. Não se sabe quantas pessoas foram internadas nesses locais durante todo esse tempo, mas, depois de 2007, quando foi sancionada a lei federal que concedeu pensão vitalícia aos ex-internos, quase 12 mil pessoas solicitaram o benefício, e cerca de 8,7 mil foram deferidos.
Já a soma dos filhos separados se aproxima de 20 mil, pelas estimativas do Movimento de Reintegração dos Atingidos pela Hanseníase (Morhan). Depois de anos de luta, liderada pelo Morhan, em 2023, foi sancionada a lei que estende o direito à pensão a essas pessoas. No final do ano passado, a lei foi regulamentada pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e, atualmente, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania recebe os formulários de requerimento, que são analisados por uma comissão interministerial.
Maus tratos
Giovana, filha de Rita, já enviou seus documentos, mas preferiu não dar entrevista, porque não gosta de relembrar os 10 anos que passou no educandário. Marly Silva também diz o mesmo, mas aceitou dividir suas memórias dolorosas.
"Eu tinha de 5 para 6 anos, e me colocavam pra tomar conta de 60 crianças. Se não desse conta do serviço, a gente apanhava. Eu arrumava o dormitório, dava banho nas crianças, tinha que usar o escovão pra deixar o chão brilhando, porque, de vez em quando, vinham umas visitas que eles chamavam de 'caravana'. Eles botavam as crianças todas arrumadinhas, alinhadas, e falavam assim: 'Pode escolher a criança que você quiser'. Aí as pessoas levavam, sem autorização dos pais, nem da família... "
Marly chegou a receber visitas da mãe, mas o momento de reencontro era seguido de mais agressões, apenas porque, como filha, queria tocar nela.
"Depois, eu levava um monte de beliscões e ficava trancada em um quarto escuro, com ratos, baratas... Há pouco tempo, eu descobri que eu tenho medo de escuro por causa disso. Eu fui fazer um exame, dentro de uma máquina escura, e me deu uma agonia, uma aflição tão grande que eu pedi pra eles me tirarem"
Roberto dos Santos de Jesus relata um trauma parecido: "Esses dias, eu fui num parque aquático, e, quando, eu entrei no tobogã, começou a me dar fobia de estar em um local apertado. Aí, eu me lembrei de algum momento que fiquei trancado dentro de uma caixa, algo assim..."
Nos seus primeiros anos de vida, ele foi cuidado por familiares, mas, depois, precisou passar três anos no educandário: "Eram regras em cima de regras, e tinham regras que a gente nem sabia que existiam, mas, se a gente descumprisse, a gente apanhava. Todo mundo apanhava, não importava o que acontecia." Muitas vezes, as crianças também passavam fome ou tinham que comer alimentos estragados, conta ele.
Sofrendo com essa situação, algumas famílias arriscavam entrar na colônia com as crianças escondidas, mas o medo era tão grande, que geralmente o arranjo era mantido por poucos dias: "Cada vila tinha um chefe da segurança, que ficava vigiando as casas. Quando tinha criança, ele botava na rua... Batia nos pais, batia nos filhos e ainda botava pra fora pra voltar pro inferno do educandário", explica Roberto.
Enfrentando a dor da separação e o pesadelo das torturas físicas e psicológicas, os filhos viam a colônia como um oásis. Em 1986, quando o Curupaiti abriu suas portas para crianças, boa parte delas passou a viver nas pequenas casas de vila, destinadas aos pacientes internados com familiares, ou que formavam família dentro da colônia. Mas isso não resolvia todos os problemas.
Vida na colônia
Roberto continuou com medo de ser separado novamente: "Logo que nós viemos para cá, periodicamente, tinha que fazer exame. Eu morria de medo de aparecer alguma ferida e me tirarem da minha mãe de novo. Então, eu corria pra dentro da mata e ficava lá escondido o dia inteiro".
Já Marly enfrentou a pobreza que assolava muitas famílias da colônia, e precisou trabalhar em casas de família durante a adolescência em troca de comida, sendo tratada com desprezo pelos patrões. Depois, conseguiu um trabalho dentro da própria colônia, e só então encontrou "amparo" nas suas próprias palavras. Com seu primeiro salário, comprou um gravador, porque sempre gostou de cantar.
Muitos também passam até hoje por dificuldades burocráticas, porque não foram registrados no nome dos pais. É o caso de Giovana, que, na certidão de nascimento, consta como filha dos avós maternos, e de Roberto, que até hoje se chama "dos Santos de Jesus", por ter sido registrado como filho dos tios. Ele entrou na Justiça para ser adotado por sua mãe verdadeira e finalmente poder usar seu sobrenome: Santana. "Quero dar este presente a ela em vida", diz.
Reparação
Rita de Cássia, que é chamada de "Mãe Rita" no Curupaiti, se tornou uma liderança da comunidade e tem ajudado muitos filhos separados a reunirem sua documentação, para solicitar a pensão federal. Marly também está engajada nesse trabalho voluntário. Ela diz que muitos filhos separados não conseguiram avançar nos estudos, e até hoje batalham por trabalho, para fugir da miséria.
O Movimento de Reintegração dos Atingidos pela Hanseníase também tem feitos reuniões com os filhos separados em colônias para explicar como o benefício deve ser solicitado. O integrante do Mohan, Artur Custódio, diz que a pensão não vai apenas corrigir essa injustiça social, como também é uma ação de justiça de transição, como são chamadas as medidas que visam reparar violações de direitos humanos.
"Tem várias políticas do passado que, na verdade, eram crimes. A gente precisa olhar para trás e lembrar, para que não se repita, né? A política da hanseníase foi uma política eugenista, higienista, de limpeza da sociedade. Na época de Getúlio Vargas, se dizia assim: 'essa doença é de classes perigosas', e você vê que a segregação atingia principalmente negros e indígenas."
Artur diz que muitos filhos separados já morreram sem receber qualquer reparação do Estado, mas acredita que a análise em curso será feita de forma rápida, e os beneficiados poderão receber suas pensões mensais, no valor de um salário mínimo e meio, em breve. Segundo ele, mais de 5 mil processos já foram enviados, e muitos outros chegarão à comissão interministerial nas próximas semanas. O Ministério dos Direitos Humanos foi procurado para dar uma previsão de pagamento do benefício, mas não respondeu até o fechamento desta reportagem.