Bolsonaro é autoritário, e Lula precisa dizer que governará para todos, afirma brasilianista

Por UIRÁ MACHADO

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O cientista político inglês Anthony Pereira, 63, acompanha as eleições brasileiras desde a redemocratização do país. Com o distanciamento que o olhar estrangeiro lhe permite, ele afirma que a disputa deste ano está diferente das demais e que há muito em jogo neste domingo (30).

"O Brasil é uma democracia grande, então a eleição tem importância para o destino da democracia em geral", afirma em entrevista à Folha.

Tido como um dos brasilianistas mais respeitados da atualidade, Pereira considera que a reeleição de Jair Bolsonaro (PL) colocaria o Brasil no caminho de países como a Venezuela. Diz que o atual presidente tem a mentalidade de um autoritário e que seria mais difícil contê-lo num eventual segundo mandato.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por outro lado, não representa a mesma ameaça na visão de Pereira. O cientista político afirma que o PT já deu demonstrações de ser um partido democrático, apesar de apoiar regimes ditatoriais em outros países.

Seja qual for o resultado, o brasilianista diz: "O presidente, seja quem for, vai ter que governar para todos os brasileiros, não somente para as pessoas que votarem nele. Tem que dizer isso e mostrar que entende o significado disso".

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PERGUNTA - Há no Brasil uma sensação difusa de que esta campanha eleitoral está muito mais tensa do que as anteriores. O sr. acompanha as eleições brasileiras desde a redemocratização e, por ser estrangeiro, tem menos envolvimento emocional. Na sua visão, a atual disputa está mesmo fora da curva?

ANTHONY PEREIRA - Ela está diferente das demais, sim. Tem algumas afinidades com a eleição de 2014 entre Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB). Mas parece que Bolsonaro está abusando da máquina pública para tentar ganhar muito mais do que Dilma em 2014.

P - Diferente como? A polarização é um fator?

AP - Não, eu não acho que o mero fato de haver polarização faça a diferença. A eleição de 2014 também foi polarizada. O que mudou, do meu ponto de vista, foi o colapso da centro-direita e a ocupação desse espaço pela extrema direita. Há elementos da extrema direita que são contra o Iluminismo, contra a separação entre igreja e Estado, contra a ciência, contra o debate racional na política.

Esses fatores transformam a eleição em uma espécie de cruzada, em uma guerra, como se a moralidade e o bem estivessem de um lado, e o mal e o diabo do outro. É muito difícil manter um espaço público saudável e um debate ponderado sobre políticas públicas quando um dos lados enxerga a política dessa maneira.

AP - É possível antever a reação da comunidade internacional aos possíveis desfechos da eleição neste ano?

AP - O Brasil é uma democracia grande, então a eleição tem importância para o destino da democracia em geral. É importante que o processo seja livre e justo, no jargão internacional dos observadores eleitorais, e que o resultado seja respeitado.

P - O que pode acontecer se Bolsonaro perder e se recusar a aceitar o resultado?

AP - Seria negativo para o Brasil. O governo dos Estados Unidos já deixou claro que considera implausíveis as alegações de fraude eleitoral. A União Europeia também veria com maus olhos eventual recusa. A imagem de Bolsonaro é ruim na maior parte das democracias, e ficaria ainda pior se ele não aceitar uma eventual derrota nas eleições.

P - Do ponto de vista do lugar do Brasil no mundo, o que significa a vitória de Lula? E a de Bolsonaro?

AP - Talvez o mais importante do ponto de vista internacional seja a questão do desmatamento na Amazônia. Bolsonaro age como se diminuir a taxa de desmatamento seja uma injúria à soberania brasileira. Isso é estranho, porque a arquitetura do sistema de proteção das florestas e redução de carbono foi criado em parte pelo Brasil, começando com a conferência Eco no Rio de Janeiro, em 1992.

Durante os governos Lula, de 2003 a 2010, a taxa de desmatamento na Floresta Amazônica caiu bastante. É possível que um novo governo Lula repita essa conquista. Pode ser uma maneira de iniciar o fim do isolamento internacional que o Brasil está sofrendo agora.

P - Diversos intelectuais do Brasil e de outros países têm apontado um risco de o presidente Bolsonaro conduzir o país num rumo autocrático semelhante ao de países como Venezuela e Hungria, caso seja reeleito. O sr. concorda com essas análises?

AP - Concordo. Bolsonaro elogiou Hugo Chávez quando ele tomou o poder na Venezuela. Ele tem um histórico de elogiar ditadores e falar mal da democracia. Disse que a ditadura no Brasil, de 1964-1985, foi melhor do que os governos democráticos. Disse que o regime militar cometeu um erro por torturar e não matar o suficiente. Dedicou o voto dele no impeachment de Dilma ao Carlos Brilhante Ustra, [condenado como torturador].

Com certeza Bolsonaro gostaria de reduzir a autonomia do STF [Supremo Tribunal Federal], seja com a ampliação do número de ministros, seja com algumas indicações de pessoas leais a ele. Bolsonaro acha que ele é a voz do Brasil de verdade, ou seja, que teria o direito de fazer o que quiser como presidente, independentemente dos outros Poderes.

Essa não é a mentalidade de um democrata. É a mentalidade de um autoritário.

P - Em caso de reeleição, é possível conter essa disposição autoritária a que o sr. se refere? As instituições e a sociedade civil são fortes o suficiente?

AP - Houve muita resistência no primeiro mandato de Bolsonaro. A maioria dos governadores e muitos prefeitos resistiram ao negacionismo do presidente durante a pandemia de Covid-19. O Supremo tem sido importante ao resistir às investidas de Bolsonaro por mais poder. O STF, provavelmente, tem sido a instituição chave nesse sentido. Mas seria mais difícil resistir num segundo mandato.

Creio que uma vitória de Lula seria melhor para a democracia brasileira, porque Bolsonaro, se reeleito, tentará atacar os outros Poderes para se fortalecer como presidente. Ele tentaria criar o que cientistas políticos chamam de regime híbrido: uma democracia com uma quantidade crescente de elementos autoritários.

P - O sr. enxerga risco de haver um golpe militar clássico em caso de derrota de Bolsonaro?

AP - Não. Não vejo as Forças Armadas prontas para uma aventura tão audaz como um golpe militar clássico, no estilo de 1964.

P - O que explica que, ainda hoje, mais de 30 anos depois da ditadura, os militares ainda tenham tanta voz no debate público brasileiro?

AP - Porque os atores políticos envolvidos na transição democrática nunca enfrentaram a questão das prerrogativas militares e nunca tentaram políticas de Justiça de transição até muito mais tarde, e muito timidamente. Houve uma transição tranquila, mas baseada em prerrogativas militares e em um enorme papel político para as Forças Armadas, fora do comum para uma democracia.

P - Opositores de Lula afirmam que o PT representa uma ameaça à democracia, devido ao apoio a ditaduras comunistas e à defesa de pautas como a regulação da mídia, por exemplo. O sr. concorda com essa visão?

AP - Não. Entendo que uma condenação dos regimes autoritários de Cuba, da Nicarágua e da Venezuela por parte de Lula e outros líderes no PT seria bem recebida por muitos. Mas Cuba, Nicarágua e Venezuela são Estados soberanos.

Na política doméstica, o PT é um partido democrático. Em 2010, Lula não tentou mudar a Constituição para obter um terceiro mandato. A regulação da mídia, por sua vez, é comum em vários países. Regular a mídia não significa, necessariamente, acabar com liberdade de expressão ou a liberdade de imprensa.

Por exemplo, admiro muito a BBC do Reino Unido por causa da qualidade de seu jornalismo. Mas a BBC é regulada. As regras sobre a cobertura da BBC na política são exigentes. Tem uma obrigação de ser imparcial em relação aos partidos políticos, por exemplo; tem que representar a diversidade de sociedade também.

Liberdade de imprensa de verdade não significa que qualquer empresa possa espalhar "fatos" duvidosos e ganhar audiência e dinheiro com isso. Por causa de regulação da mídia no Reino Unido, não há espaço para canais como a Fox News, que existe nos EUA, ou a Jovem Pan, do Brasil. E essa regulação é feita democraticamente, por meio de um Parlamento eleito.

Nenhum democrata precisa ter medo da regulação da mídia. A questão é como regular.

P - E quanto aos escândalos de corrupção do PT? Não são um problema?

AP - Sim, são um problema. Existe evidência em abundância de que havia um esquema de propina em larga escala na Petrobras durante os governos de Lula e Dilma. Mas a ideia de que era exclusivo do PT parece incorreta. Todos os principais partidos estavam envolvidos no petrolão.

A boa notícia é que a Operação Lava Jato promoveu uma mudança no setor privado. Agora há mais punição a atores do setor privado que se envolvem em corrupção, assim como há mais preocupação para estar em conformidade com normas como a Lei Anticorrupção.

Só que não estou certo de que tenha ocorrido uma mudança decisiva no setor público. Os escândalos do governo Bolsonaro sugerem que não houve essa mudança.

O importante é que a mídia, o público em geral, as organizações da sociedade civil e as agências de controle, como Ministério Público, Controladoria-Geral da União, Tribunal de Contas da União e a Polícia Federal, continuem a monitorar, investigar e denunciar a corrupção.

É perigoso confiar apenas na boa vontade dos políticos para reduzir a corrupção. O risco de que a corrupção será punida ainda é muito baixo, e a chance de impunidade, muito alta.

P - O que o presidente eleito, seja quem for, deve fazer para pacificar o país?

AP - O presidente, seja quem for, vai ter que governar para todos os brasileiros, não somente para as pessoas que votarem nele. Tem que dizer isso e mostrar que entende o significado disso. Nunca vi Bolsonaro fazer isso.

Um exemplo disso foi o dia 21 de outubro de 2018, quando era óbvio que Bolsonaro ia ganhar o segundo turno. Era um momento para falar com todo mundo, mas o que ele disse? "Vamos varrer do mapa os bandidos vermelhos do Brasil."

Bolsonaro tem uma mentalidade extremista, cheia de ódio, muito apropriada para um militar planejando uma guerra, mas pouco apropriada para um político civil. Uma eleição não é uma guerra, e os outros candidatos não são inimigos.

P - E quanto a Lula, ele teria condições de unir o país?

AP - Ele já falou bastante em "nós contra eles" no passado. Ele já montou uma frente muito ampla. Geraldo Alckmin (PSDB) é seu vice. Joaquim Barbosa, [ex-ministro do STF], declarou apoio a Lula. Economistas como Pérsio Arida, Pedro Malan e Armínio Fraga também. Lula não representa a mesma ameaça às instituições que Bolsonaro representa.

As pessoas que votarem em Bolsonaro têm o direito de esperar um bom governo tanto quanto os eleitores de Lula. Elas têm interesses legítimos que precisam ser considerados nas políticas públicas. Mas, no fim das contas, caberá a elas aceitar a Presidência de Lula se ele vencer.

O mesmo se aplica ao outro lado. Eleitores de Lula precisarão aceitar uma Presidência de Bolsonaro se ele vencer. Os derrotados em uma eleição democrática sempre podem tentar de novo na próxima disputa. Em regimes autoritários, essa oportunidade desaparece.

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RAIO-X

ANTHONY PEREIRA, 63

Cientista político formado pela Universidade de Sussex (Inglaterra), com mestrado e doutorado pela Universidade Harvard (EUA), ele é diretor do Centro Latino-Americano e Caribenho Kimberly Green, na Universidade Internacional da Flórida, nos EUA. É autor de "Ditadura e Repressão" (2012, Paz e Terra), entre outros livros.