Forças Armadas flertam com discurso de antidemocráticos em nota ambígua
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Ao longo da semana, o Ministério da Defesa e as Forças Armadas fizeram três manifestações públicas por escrito. Os assuntos não eram segurança ou soberania nacional, mas a fiscalização das urnas eletrônicas e os atos antidemocráticos que ocorrem pelo país desde o segundo turno da eleição.
Os documentos são ambíguos e flertam com o discurso propagado nos últimos meses pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) e emulado por uma parcela de seus apoiadores que não aceitam a derrota eleitoral e pedem, em frente a quartéis, por um golpe militar.
Tem destaque a escolha da palavra "moderadoras", em nota conjunta publicada pelos comandantes de Marinha, Exército e Aeronáutica na última sexta-feira (11), ao fazer referência às Forças Armadas.
As três instituições chamam os atos antidemocráticos de "manifestações populares" e reafirmam "seu compromisso irrestrito e inabalável com o Povo Brasileiro", "ratificado pelos valores e pelas tradições das Forças Armadas, sempre presentes e moderadoras nos mais importantes momentos de nossa história".
Parte do bolsonarismo defende a tese improcedente de que o artigo 142 da Constituição permitiria uma intervenção dos militares em caso de conflito entre os Poderes da República.
"Não é historicamente correto que as Forças Armadas tenham tido uma atuação moderadora; e juridicamente não é pertinente invocar alguma atribuição de natureza moderadora às Forças Armadas brasileiras", explica Oscar Vilhena, professor da FGV Direito-SP e colunista da Folha.
Durante o período republicano, episódios de interferência militar se acumulam no histórico político do país, como o golpe de 1964 que levou a mais de 20 anos de ditadura.
"O termo moderador veio do quarto poder do império", explica a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz. "Essa função moderadora a que eles próprios se advogam tem a ver com essa ideia de um poder acima dos outros."
Vilhena avalia contudo que, ainda que a nota seja ambígua, o que parece ser mais relevante é que, apesar do assédio presidencial e de grupos de extrema-direita, as Forças Armadas não promoveram o ambicionado golpe. "A nota infelizmente não tem a clareza e a determinação que teve a nota elaborada pelos comandantes das forças norte-americanas, após o 6 de janeiro, expressando um compromisso absoluto com o processo constitucional."
Assinado pelo almirante Almir Garnier Santos (Marinha), pelo general Marco Antônio Freire Gomes (Exército) e pelo tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior (Aeronáutica), o documento traz ainda recados indiretos ao Judiciário, alvo constante de Bolsonaro durante seu governo.
A nota indica ainda uma escolha de palavras grafadas em maiúscula ou minúscula. Citada cinco vezes, a palavra "povo" aparece sempre em caixa alta.
O mesmo não ocorre com as palavras "democracia" e "estado democrático de direito", que aparecem uma vez cada em letras minúsculas, e a única exceção é precedida pelo termo "verdadeira". "A construção da verdadeira Democracia pressupõe o culto à tolerância, à ordem e à paz social", diz o texto.
"Me parece que se trata de um discurso muito orquestrado pelo bolsonarismo e por Jair Bolsonaro, utilizando o mesmo tipo de linguajar, o mesmo sequestro de conceitos fundamentais da democracia para fins golpistas", diz Schwarcz, que é professora da Universidade de São Paulo e da Universidade de Princeton (EUA).
Ela avalia que o teor da nota é semelhante ao discurso de Bolsonaro após a derrota eleitoral em que afirmou que manifestações pacíficas eram bem-vindas, condenando apenas condutas como o cerceamento de ir e vir.
Ao longo do mandato, Bolsonaro fez diferentes discursos cifrados e de cunho golpista com indicações de que faria o que o povo quisesse em nome da "liberdade" e da "democracia", junto a referências aos militares.
Em atos bolsonaristas sempre foi comum expressões como "todo poder emana do povo" e "eu autorizo". A interpretação seria a de que o aval de seus apoiadores Bolsonaro daria sinal verde para acionar as Forças Armadas.
"Estão esticando a corda, faço qualquer coisa pelo meu povo", disse o presidente a centenas de apoiadores em março de 2021. "Pode ter certeza, o nosso Exército é o verde oliva e é vocês também. Contem com as Forças Armadas pela democracia e pela liberdade."
Em grupos de conversa no Telegram, a escolha de palavras dos militares, em especial as menções ao "povo", não tem passado despercebida. As notas têm sido interpretadas como incentivo às manifestações, desde que não haja bloqueio de estradas.
Após a divulgação do relatório do Ministério da Defesa sobre as urnas enviado ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral), diferentes mensagens destacavam a frase final do ofício como um apoio velado: "Por fim, reafirmo o compromisso permanente do Ministério da Defesa e das Forças Armadas com o Povo brasileiro, a democracia, a liberdade, a defesa da Pátria e a garantia dos Poderes Constitucionais, da lei e da ordem", escreveu o ministro Paulo Sérgio Nogueira.
O relatório, que não trouxe qualquer indício de fraude, inicialmente gerou descontentamento entre a militância. No dia seguinte (10), porém, a pasta deu nova munição à narrativa antidemocrática ao divulgar uma nova nota afirmando que "não excluiu a possibilidade de fraude ou inconsistência nas urnas eletrônicas".
A Defesa tem ainda facilitado o rápido compartilhamento das notas ao divulgá-las em seu canal no Telegram. Apesar de não ter sido assinada pelo ministro da pasta, também a nota dos comandantes da Forças Armadas foi divulgada pelo canal.
Leia alguns dos trechos ambíguos na nota das Forças Armadas e no ofício do Ministério da Defesa.
'MODERADORAS'
Apesar de a Constituição não prever qualquer papel moderador aos militares, a nota dos comandantes faz referência às Forças Armadas como "sempre presentes e moderadoras" na história do país. O trecho faz eco à tese improcedente de que o artigo 142 da Constituição permitira um intervenção dos militares a outros Poderes.
O que diz a nota das Forças Armadas:
" (...) ratificado pelos valores e pelas tradições das Forças Armadas, sempre presentes e moderadoras nos mais importantes momentos de nossa história"
POVO E DEMOCRACIA
A palavra povo aparece cinco vezes na nota das Forças Armadas, todas as vezes em letra maiúscula. Por outro lado, as palavras "democracia" e "estado democrático de direito" aparecem em minúsculas. A única exceção é precedida por "verdadeira". Em um dos trechos remete à expressão "todo poder emana do povo", que é usada por bolsonaristas para defender pautas golpistas.
O que diz a nota das Forças Armadas:
" (...) a Marinha do Brasil, o Exército Brasileiro e a Força Aérea Brasileira reafirmam seu compromisso irrestrito e inabalável com o Povo Brasileiro, com a democracia e com a harmonia política e social do Brasil,
"A construção da verdadeira Democracia pressupõe o culto à tolerância, à ordem e à paz social".
"(...) cabe às autoridades da República, instituídas pelo Povo, o exercício do poder que "Dele" emana, a imediata atenção a todas as demandas legais e legítimas da população, bem como a estrita observância das atribuições e dos limites de suas competências, nos termos da Constituição Federal e da legislação.
LIBERDADE
A palavra "liberdade" aparece em letra minúscula quando mencionada a "liberdade de reunião" e a "liberdade de locomoção". Está em caixa alta, por outro lado, quando aparece de modo abstrato e com menção ao Legislativo como contenção a arbitrariedades, o que pode ser lido como um dos recados ao Judiciário
O que diz a nota das Forças Armadas
"(...) reiteramos a crença na importância da independência dos Poderes, em particular do Legislativo, Casa do Povo, destinatário natural dos anseios e pleitos da população, em nome da qual legisla e atua, sempre na busca de corrigir possíveis arbitrariedades ou descaminhos autocráticos que possam colocar em risco o bem maior de nossa sociedade, qual seja, a sua Liberdade.
HARMONIA SOCIAL
Ao sugerir à Justiça Eleitoral a criação de uma comissão de investigação sobre as urnas, pede urgência e cita a "harmonia política e social", o que pode fazer referência aos atos de questionamento eleitoral
O que diz o ofício do ministro da Defesa ao TSE:
"Em face da importância do processo eleitoral para a harmonia política e social do Brasil, solicito, ainda, a essa Corte Superior considerar a urgência na apreciação da presente proposição. Por fim, reafirmo o compromisso permanente do Ministério da Defesa e das Forças Armadas com o Povo brasileiro, a democracia, a liberdade, a defesa da Pátria e a garantia dos Poderes Constitucionais, da lei e da ordem"
ATOS ANTIDEMOCRÁTICOS
A exemplo do discurso de Bolsonaro, evitam criticar os atos antidemocráticos pelo país, condenam "eventuais excessos" e citam trecho do Código Penal que diz que a manifestação crítica aos Poderes constitucionais não constitui crime
O que diz a nota das Forças Armadas:
Chama os atos antidemocráticos de "manifestações populares que vêm ocorrendo em inúmeros locais do País".
Destaca trecho da lei dos crimes contra o Estado democrático de Direito: "(...) o Parlamento Brasileiro foi bastante claro ao estabelecer que: 'Não constitui crime [...] a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais, por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais'."
Diz que são condenáveis "eventuais excessos cometidos em manifestações que possam restringir os direitos individuais e coletivos ou colocar em risco a segurança pública; bem como quaisquer ações, de indivíduos ou de entidades, públicas ou privadas, que alimentem a desarmonia na sociedade"