Agenda da segurança pública reúne de problemas centenários a efeito Bolsonaro
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A segurança pública foi o tema que mais caiu no ranking de preocupações dos brasileiros desde as eleições presidenciais de 2018, quando era assunto de destaque, puxado pela campanha vitoriosa de Jair Bolsonaro (PL), sua ode às polícias e às armas e sua defesa de torturadores e do excludente de ilicitude.
Naquele pleito, a segurança encabeçou, ao lado da saúde, os temas que mais preocupavam os eleitores, segundo o Datafolha, e tinha 20% das menções espontâneas. Agora, em pesquisa antes da eleição de 2022, a preocupação com segurança despencou e marcou 6%, enquanto questões que quase inexistiam entre as inquietações dos brasileiros em 2018 emergiram com força, como a inflação e a fome.
O período de pandemia impactou os índices de violência, e a retomada das atividades presenciais ocorre em novo contexto: há mais de 1 milhão de novas armas legais no Brasil e menos controles sobre elas.
"A agenda de 2022 é bem diferente da de 2018 porque, agora, temos de lidar com o efeito dos anos Bolsonaro", afirma Melina Risso, diretora de projetos do Instituto Igarapé. "Foram anos de desconstrução de políticas e de descontrole de regras que determinam comportamentos preventivos."
Os exemplos vão do afrouxamento da política de controle de armas às alterações no Código de Trânsito, passando pelo desmonte da estrutura de fiscalização ambiental e pela mudança do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) da pasta da Justiça para a da Economia.
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Folha - Quais os principais desafios na segurança pública?
Melina Risso - A agenda na área arrasta até hoje problemas estruturais do século 19, como o viés racial das práticas de segurança pública e justiça criminal, o que resulta na presença desproporcional de pessoas negras em presídios e entre as vítimas da letalidade policial.
Outros problemas não são centenários, mas também velhos conhecidos, como a baixa cooperação entre esferas governamentais e instituições, os altos índices de criminalidade violenta, a baixa capacidade investigativa das polícias e sua desvalorização, além de um sistema prisional superlotado e insalubre.
Entre os desafios mais recentes estão a explosão da violência na Amazônia Legal, a nacionalização de organizações criminosas, a expansão do controle territorial por milícias, o uso de meios digitais para a prática de crimes e as novas formas de controle do Estado por meio de biometria e outras tecnologias.
Folha - Mais armas trazem mais segurança?
Melina Risso - Apesar da tese bolsonarista de que o armamento da população leva à queda da criminalidade, estudos indicam que, onde há mais armas, há mais mortes e mais violência.
O Estatuto do Desarmamento (2003) criou regras mais restritivas ao acesso a armas e penas mais duras para porte e posse ilegais, desacelerando o crescimento de homicídios --de 6%, entre 1980 e 2003, para 0,9% nos 15 anos seguintes, segundo o Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
Desde janeiro de 2019, quando decretos presidenciais mudaram as regras do acesso a armas e munições no Brasil, até o final de 2021, mais de 1 milhão de novas armas foram registradas, seja para uso pessoal ou institucional (caso de policiais), de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Foram 994 milhões de munições vendidas no país, segundo o Instituto Sou da Paz.
Os sistemas de controle de armas no país --Sigma, do Exército, e Sinarm, da PF-- não estão integrados, e o Exército, responsável pelos registros de Caçadores, Atiradores esportivos e Colecionadores (CACs), admitiu não ter detalhes das armas em posse desses brasileiros. Os registros ativos de CACs aumentaram 474% desde 2018, e o número de armas em posse desses brasileiros bateu a marca de 1 milhão em julho.
Folha - A queda dos assassinatos é sinal de que a segurança vai bem?
Melina Risso - A redução deve ser comemorada, mas precisa ser melhor compreendida. Especialistas dizem que a queda é fruto do envelhecimento da população, de melhorias do trabalho policial e de tréguas nas guerras entre facções do crime organizado.
Desde 2018, essa taxa caiu 19%, mas o país ainda concentra 2,7% da população global e 20,4% dos homicídios do planeta. O pico da violência letal no Brasil ocorreu em 2017, com 30,2 assassinatos por 100 mil habitantes. Em 2021, eram 22,3 --muito acima de países populosos como EUA (6,52) e Índia (2,95).
Do ponto de vista territorial, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, na última década houve queda de homicídios em todas as regiões, à exceção da Norte, onde essa taxa cresceu 62%. Do ponto de vista populacional, em 2021, 91% das vítimas eram homens, 78% eram pessoas negras e 51% eram jovens.
Folha - Por que as mortes aumentaram na região Norte?
Melina Risso - O incremento da violência letal no Norte do país está ligado às dinâmicas dos vários mercados ilícitos que convivem na região e à questão demográfica: onde há mais jovens tende a haver mais criminalidade violenta, e na região essa parcela segue crescendo.
Além disso, hoje a região da Amazônia Legal e sua população estão imersas num ecossistema de crimes ambientais, como extração ilegal da madeira, de minérios e de animais selvagens, de crimes ligados à terra, como grilhagem e invasão de territórios indígenas, e de redes do narcotráfico. "A região faz fronteira com Bolívia, Peru e Colômbia, que produzem 4.000 toneladas de cocaína por ano. Metade disso vem ao Brasil", diz Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Folha - Como lidar com a nacionalização do crime organizado?
Melina Risso - O crime organizado brasileiro, agora articulado nacionalmente, requer ações coordenadas do governo federal, mas o quadro é de falta de planejamento e de articulação entre os órgãos de segurança pública e do sistema de Justiça criminal.
Aprovado em 2018 para integrar esferas de governança e instituições de combate ao crime e à violência, o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) continua, quatro anos depois, na gaveta.
"Criamos o arcabouço legal, que carece de implementação", diz Risso, do Igarapé, que destaca o valor do planejamento decenal previsto na lei do SUSP e que ainda precisa de atenção do governo federal. O SUSP estabeleceu parâmetros nacionais de cooperação e de uso de dados, utilização de evidências científicas para o planejamento de ações e mecanismos de gestão, como sistemas de avaliação profissional.
Folha - Por que as polícias precisam de mais capacitação, valorização e controle?
Melina Risso - Bolsonaro cooptou a pauta sindical policial durante a campanha e seu mandato. "Fez promessas, inclusive de aumento, mas não cumpriu quase nada. Colocou-se como grande porta-voz da categoria e não fez nada", diz Lima, do FBSP.
Via de regra, as polícias sofrem com baixos salários, falta de estrutura, pouca capacidade investigativa e ausência de protocolos nacionais de atuação. O resultado é insatisfação de policiais e atuação ineficiente. Segundo dados do Instituto Sou da Paz, o Brasil só esclarece 37% dos milhares de homicídios do país.
As polícias brasileiras também estão entre as que mais matam no mundo, o que implica maior controle da atividade. Maior controle também é visto como necessário na participação de policiais na política.
Nas eleições de 2022, as candidaturas de membros das forças de segurança do Estado cresceram mais de 27%. "As carreiras típicas de Estado têm de ser rigorosas. Se quiser entrar na política, tem que sair da carreira, é incompatível. E tem gente usando a simbologia das polícias para fins eleitorais", diz Risso.
Folha - Por que a atual política de drogas do Brasil gera mais problemas?
Melina Risso - A questão vem sendo tratada pela via da repressão e da Justiça criminal. Assim, além da criminalização de quem precisa de tratamento médico, a política de drogas brasileira mantém ao menos 230 mil pessoas presas por tráfico de drogas, a maioria dos quais jovens, negros e pobres, que engrossam as fileiras de facções.
"Seguimos prendendo o pequeno traficante, sem desmantelar a cadeia que levou a droga até ele", diz Janine Salles de Carvalho, da Rede de Justiça Criminal. "Há modelos alternativos, cujo funcionamento foi comprovado em outros países, e seguimos com um viés repressivo que só alimenta o problema."
Nas ruas, ocorre a ocupação de territórios e a ação violenta da polícia, por vezes com a morte até mesmo de crianças --sem que índices de consumo e de circulação dessas substâncias tenham sido alterados.
Quais são os desafios que a tecnologia impõe à segurança pública? Há tecnologias que podem ajudar em estratégias de prevenção e repressão ao crime, mas que têm potencial de violar a privacidade dos cidadãos, como o uso de reconhecimento facial e o chamado policiamento preditivo, o que, quando feito a partir da análise de perfis dos cidadãos, torna-se suscetível a vieses. A prática de crimes por meios digitais e os potenciais das criptomoedas na ampliação da atuação de redes criminais devem se impor como um novo desafio.