Comitiva de Bolsonaro diverge em disposição de devolver relógios de luxo do Qatar

Por RANIER BRAGON

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - Integrantes da comitiva que acompanhou Jair Bolsonaro (PL) em visita oficial ao Qatar, em outubro de 2019, adotam posturas divergentes sobre a disposição de entregar ao poder público os relógios de luxo que receberam de autoridades do país árabe.

O presente foi devolvido logo em seguida por um dos membros e submetido à consulta do órgão de ética da Presidência por outro, independentemente de questionamentos públicos. Parte do grupo consultado pela Folha se dispõe agora a abrir mão dos relógios.

Enquanto isso, outros integrantes da comitiva se esquivam de debate ético ou indicam disposição de seguir com os presentes de luxo enquanto não houver uma exigência oficial.

No dia 1º, o TCU (Tribunal de Contas da União) aprovou acórdão recomendando a devolução dos relógios da marca Cartier e Hublot, cujos preços variam de R$ 30 mil a R$ 100 mil e que foram entregues a várias autoridades sem cobrança do devido tributo alfandegário.

O tribunal entendeu que o recebimento dos itens de luxo viola o princípio constitucional da moralidade na administração pública.

De acordo com o TCU e com documentos da Comissão de Ética Pública da Presidência, receberam os relógios quatro então ministros: Onyx Lorenzoni (Casa Civil), Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Osmar Terra (Cidadania).

Além deles, também foram presenteados na ocasião Sergio Segovia, presidente da Apex (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e investimentos); Gilson Machado, presidente da Embratur e que depois viraria ministro do Turismo, Caio Megale, então chefe da Assessoria Especial de Relações institucionais do Ministério da Economia, e Roberto Abdala, então embaixador do Brasil em Doha.

Abdala e Megale tomaram uma atitude distinta dos demais, antes de qualquer questionamento. O embaixador imediatamente "providenciou a devolução do presente, um relógio de pulso da marca Hublot, em razão do seu custo elevado", como relatou o TCU.

Megale foi o responsável por acionar autoridades brasileiras ao questionar formalmente a Comissão de Ética da Presidência sobre se seria ético ficar com um relógio da marca Cartier que recebeu de um ajudante de ordens da Presidência da República, quando já estava no Brasil, pouco mais de um mês depois da viagem ao Qatar.

Onyx e Megale disseram à Folha de S.Paulo que, após a decisão do TCU, vão devolver os presentes. Terra indicou que fará o mesmo caso seja notificado. Machado sinalizou que pode insistir em continuar com o relógio. Heleno não quis se manifestar. Araújo e Segovia não foram localizados.

Após o questionamento formal feito por Megale, a Comissão de Ética da Presidência decidiu por 4 votos a 3, em junho de 2021, que não haveria necessidade de devolução dos presentes, já que, de acordo com o voto da maioria, não estaria caracterizado conflito de interesses nem ofensa ao Código de Conduta da Alta Administração Federal.

Dois pontos foram usados pelo voto que prevaleceu na comissão, quase dois anos após a viagem. O código veda a autoridade pública a aceitação de presentes, "salvo de autoridades estrangeiras nos casos protocolares em que houver reciprocidade". Já resolução da comissão permite o recebimento desde que "ofertados por autoridades estrangeiras, nos casos protocolares em que houver reciprocidade ou em razão do exercício de funções diplomáticas".

Em março de 2022, porém, o deputado federal de oposição Ivan Valente (PSOL-SP), ingressou com uma representação sobre o caso no TCU.

No acórdão aprovado no dia 1º, de relatoria do ministro Antonio Anastasia, o TCU decidiu "dar ciência à Secretaria-Geral da Presidência da República e à respectiva Comissão de Ética Pública de que o recebimento de presentes de uso pessoal com elevado valor comercial por agente público em missão diplomática extrapola os limites de razoabilidade (...), em desacordo com o princípio da moralidade pública, previsto no art. 37 da Constituição Federal, cabendo, em tal hipótese, a entrega do bem" ao patrimônio público nacional.

Em seu voto, Anastasia escreveu que a troca de presentes diplomáticos deve envolver objetos de caráter simbólico, suficientes apenas para "representar, como gesto simbólico e tradicional, a cortesia inerente às relações entre agentes diplomáticos".

Assim sendo, prosseguiu o ministro, "o valor comercial do objeto recebido pelo agente em missão diplomática não deve ofuscar sua natureza, repito, meramente simbólica".

Em nota, o Sindifisco (Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal) afirmou que mercadorias estrangeiras, ainda que sejam trazidas em aviões da FAB, estão sujeitas às mesmas regras que são aplicadas para os aviões comerciais -ou seja, isenção tributária para itens com valores até US$ 1 mil.

"Passageiros ou tripulantes de aviões da força aérea, Marinha, Exército, entre outros, precisam declarar os bens adquiridos que custam mais de US$ 1 mil e pagar o devido tributo já na alfândega. Mesmo se a base aérea não for alfandegada é preciso que a chegada do voo seja avisada com antecedência para que um auditor fiscal possa estar presente na hora do desembarque", diz o Sindifisco. "Caso o auditor não chegue a tempo, é obrigatório que o viajante aguarde a chegada do servidor da Receita Federal para apresentar os bens à alfandega."

OUTRO LADO

Políticos dizem que vão devolver relógios, mas outros silenciam Integrantes da comitiva de Bolsonaro ao Qatar afirmaram à Folha que pretendem devolver os relógios recebidos de presente. Outros ou não se manifestaram ou deram a entender que podem não seguir a recomendação do TCU.

"Quando eu for notificado, vou tomar providências. Eu tenho é uma decisão da Comissão de Ética [da Presidência] de que não havia problema. Agora, se vier uma coisa diferente... Por enquanto, não recebi nenhuma notificação, nada", afirmou o ex-ministro e hoje deputado Osmar Terra (MDB-RS).

Terra confirma ter recebido o relógio já no Brasil. "Deve ter vindo junto no avião [da Presidência] e depois mandaram [entregar aos presenteados]", acrescentou.

Ele diz que não vendeu nem usou o relógio, mas que não se lembra da marca. "É um relógio bonito", se limitou a dizer.

Onyx também mencionou a decisão anterior da Comissão de Ética, mas afirmou que, apesar dela, também nunca usou o presente.

"Com essa decisão do TCU é lógico que eu vou devolver o relógio, assim que eu voltar das minhas férias. O relógio está intocado, nunca foi usado, está no mesmo pacote que recebi e da mesma forma vai ser devolvido", disse.

"À época do recebimento do item, Caio Megale reportou imediatamente ao Comitê de Ética da Presidência da República para saber como proceder nessa situação", diz nota enviada pelo economista.

Mesmo com a decisão da comissão sobre a não necessidade de devolução, ele afirma que optou por não fazer uso do objeto, "que mantém-se intacto e embalado", e que agora, diante da nova recomendação do TCU, irá devolver o relógio.

Gilson Machado enviou à reportagem notícias sobre a decisão da Comissão de Ética que dava guarida à não devolução. Questionado, porém, sobre o que pretendia fazer diante da recomendação do TCU, ele não respondeu mais às mensagens.

Procurado pela coluna Painel para comentar a recomendação do TCU, Machado encaminhou mensagem que diz que a comissão de ética decidiu que ele não precisa devolver o objeto.

Heleno não quis se manifestar. A Folha não conseguiu contato com Araújo e Segovia até a publicação desta reportagem.

Procuradas na manhã desta quarta-feira (8), a Receita Federal e a Presidência da República não haviam se manifestado até a publicação desta reportagem.