José Murilo de Carvalho, um dos maiores intelectuais brasileiros, morre aos 83 anos
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Morreu na madrugada deste domingo (13) o historiador e cientista político José Murilo de Carvalho. Considerado um dos maiores intelectuais do Brasil, tinha 83 anos e estava internado com Covid-19.
O velório será realizado na segunda-feira (14), a partir das 9h, na Academia Brasileira de Letras. O enterro ocorrerá às 13h no mausoléu da ABL no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro.
José Murilo era membro da ABL desde 2004, quando foi eleito para a cadeira número 5, aberta com a morte de Rachel de Queiroz. Era, além disso, integrante da Academia Brasileira de Ciências.
Em nota, a ABCP (Associação Brasileira de Ciência Política) lamentou a morte do historiador, dizendo que as ciências sociais brasileiras perderam um dos seus grandes nomes, "notabilizado pelos seus estudos sobre o difícil processo histórico de construção da cidadania no Brasil".
A ABCP também destaca os quase 20 anos de atuação de José Murilo como professor no antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), "onde teve papel fundamental na formação de pesquisadores e na modelagem da área de pesquisa do pensamento político brasileiro".
Para Marco Lucchesi, membro da ABL e presidente da Biblioteca Nacional, José Murilo foi "um dos grandes intérpretes do Brasil", capaz de renovar "a historiografia a partir da segunda metade do século 20, com livros fundamentais" que já "nasceram clássicos".
Diversos intelectuais e acadêmicos da ABL se manifestaram sobre a morte dele. Entre eles, o economista Edmar Bacha, para quem "José Murilo foi um dos maiores historiadores que o país jamais teve".
Bacha destacou ainda alguns aspectos da trajetória do historiador: "Revelou as entranhas do Império, fez o elogio a dom Pedro 2º, estabeleceu as limitações da República, esclareceu o papel central dos militares na história política do país, entre outros temas".
Mineiro, José Murilo formou-se em sociologia e política pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Depois, obteve os títulos de mestre e doutor em ciência política pela Universidade Stanford, na Califórnia.
O caminho para chegar tão longe não foi simples. Viveu até os dez anos em uma modesta fazenda de gado leiteiro fundada por seu bisavô, onde não havia água encanada nem luz elétrica.
Segundo filho entre dez irmãos, ajudava nas atividades rurais e nas tarefas domésticas, o que incluía recolher penicos e lavar os pés enlameados dos tios no fim da tarde.
Alfabetizou-se com o pai, que era dentista, e estudou cinco anos em regime de internato num seminário de frades franciscanos em Santos Dumont (MG). De lá partiu para Daltro Filho (RS), num outro seminário, onde fez dois anos de filosofia.
Cogitou prestar vestibular para agronomia, mas abandonou o projeto por se julgar limitado em ciências exatas e biológicas. Arriscou economia, mas a prova de matemática o impediu de seguir em frente. Tentou, então, a sociologia ?e passou em segundo lugar na UFMG.
Daí em diante, foi professor e pesquisador visitante em diversas universidades, como Oxford, Leiden, Stanford, Irvine, Londres, Notre Dame, no Instituto de Estudos Avançados de Princeton, e na Fundação Ortega y Gasset em Madrid.
No Brasil, foi professor emérito da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e pesquisador emérito do CNPq.
Escreveu 19 livros, entre os quais "Os Bestializados" (melhor livro de 1988 da Associação Nacional de Pós-graduação em Ciências Sociais), "A Formação das Almas - O Imaginário da República do Brasil" (Prêmio Jabuti de 1991) e "D. Pedro II" (Prêmio Jabuti de 2008), todos considerados fundamentais para a interpretação do Brasil.
Em 2019, Carvalho relançou o livro "Forças Armadas e Política no Brasil", que tinha sido publicado originalmente em 2005 e se mostrava cada vez mais atual.
A obra ganhou uma nova edição em 2019 com textos inéditos sobre a relação entre militares e civis e alcança os primeiros meses do governo de Jair Bolsonaro (PL).
No prefácio, escreveu que se trata de "uma nova e mais pessimista interpretação do papel das Forças Armadas na história da nossa República e na construção de nossa ainda claudicante democracia".
O historiador mostra, por exemplo, que a preocupação de militares com supostas ameaças comunistas tem se consolidado há mais de 90 anos no Brasil. O ódio do ex-presidente e de seus ministros oriundos das Forças Armadas ao comunismo ?ou ao que eles entendem como tal? é um sentimento amplamente cultivado nos quartéis.
Em entrevista à Folha sobre os 130 anos da proclamação da República, em 2019, Carvalho afirmou que o pecado original da República foi não ter incluído o povo. "A República extinguiu o privilégio dos Braganças, mas não conseguiu eliminar os privilégios sociais", disse.
"Para os propagandistas, República e democracia eram indissociáveis. Mas a democracia, isto é, a participação popular no sistema representativo, ficou ausente até a década de 1940", afirmou.
Na ocasião, o historiador refletiu sobre o caráter autoritário e pouco inclusivo do início do período republicano no Brasil e afirmou que, 130 anos depois, nossa república continuava "sujeita à interferência 'moderadora' das Forças Armadas".
Também em 2019, na Flip, José Murilo falou sobre um horizonte de pouco otimismo com o futuro do Brasil: "Me preocupa muito hoje a distância para realizar um país com um mínimo de igualdade e uma democracia estabilizada".