Lava Jato foi fenômeno pop, com filme, série da Netflix e marchinha de Carnaval
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Não bastasse a onipresença da Lava Jato no noticiário durante o auge da operação, houve fôlego ainda para o tema se espalhar também pelo universo cultural, com série na Netflix, filmes, livros e até na publicidade.
O apelo pop das investigações, com suas delações que vinham à tona a cada semana, empresários em desgraça e inesperadas prisões de políticos conhecidos, fez com que o assunto inspirasse ainda de personagem em novela da Globo a uma variedade de esquetes do grupo Porta dos Fundos e também uma marchinha de Carnaval em homenagem ao policial conhecido como Japonês da Federal.
Em Curitiba, a capital da operação que completa dez anos neste mês, o interesse era tanto que uma agência de turismo se arriscou em criar um "tour da Lava Jato", em que os participantes eram levados em uma van a pontos de interesse, como a sede da Polícia Federal ou o presídio em que estavam detidos os acusados.
A revista Playboy, pouco antes de encerrar sua versão brasileira, estampou em sua capa ensaio com uma amante do doleiro Alberto Youssef, pivô da investigação.
Eram tempos em que a operação ostentava amplo apoio popular. Em pesquisa do Datafolha em 2018, 84% da população dizia que a Lava Jato deveria continuar.
Na TV, a Chevrolet tentou embarcar na onda pró-Lava Jato e lançou propaganda de um automóvel em 2017 no qual mostrava prisões de políticos e dizia que o país "cansou da malandragem". "Você no caminho da mudança", era o slogan do comercial.
Um dos símbolos daquele período foi a série da Netflix "O Mecanismo", do diretor José Padilha, o mesmo de "Tropa de Elite", que foi lançada em março de 2018, às vésperas da prisão do hoje presidente Lula.
Contava a história dos primeiros passos da operação, misturando passagens ficcionais sobre um policial obcecado, vivido pelo ator Selton Mello, que contracenava com um cover do procurador Deltan Dallagnol.
Em 2017, a Lava Jato chegou também às telas do cinema, com o filme "Polícia Federal: A Lei é para Todos", reconstituindo os primeiros capítulos da investigação, também em um clima de mocinhos contra bandidos. Os atores Marcelo Serrado e Ary Fontoura interpretavam, respectivamente, Moro e Lula.
Na campanha de divulgação, a produtora instalou no centro de Curitiba uma montanha de cédulas falsas de real, simbolizando o dinheiro apreendido durante a Lava Jato. Mais de 1,3 milhão de pessoas foram ao cinema para ver o longa pelo país.
Também o Ministério Público tentou aproveitar a onda à época, procurando personalidades para emplacar a campanha "Dez Medidas contra a Corrupção", encampada por procuradores da operação que coletaram assinaturas para um projeto de mudanças legislativas.
Um site foi criado pela Procuradoria listando celebridades que apoiavam a causa, incluindo o cantor Paulo Ricardo e os integrantes da banda Paralamas do Sucesso.
Em 2017, até Caetano Veloso compareceu a um ato em desagravo ao juiz lava-jatista Marcelo Bretas, responsável pelo braço do Rio de Janeiro. Naquela época, o magistrado fluminense estava em constante atrito com o ministro Gilmar Mendes, do STF (Supremo Tribunal Federal).
A febre da Lava Jato durou até a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, em 2018, quando houve a adesão de Sergio Moro ao governo eleito, e o clima parece ter esfriado. Parte da elite política alvo da operação foi "aposentada" com derrotas naquela eleição, e a agenda política do país mudou abruptamente para os embates e bravatas do bolsonarismo, com suas ameaças a instituições e declaratório incendiário.
O vazamento, em 2019, de conversas entre procuradores da operação no aplicativo Telegram, que mostrou práticas abusivas na investigação, só acelerou o processo.
Na direção oposta, um documentário crítico à operação, "Democracia em Vertigem", sobre o impeachment de Dilma Rousseff e a ascensão de Bolsonaro, concorreu ao Oscar no início de 2020, mas não levou a estatueta.
O assunto passou a cansar. O tour da Lava Jato da agência de turismo em Curitiba acabou por falta de interessados, e a segunda temporada de "O Mecanismo" teve pouca repercussão.
O diretor José Padilha deu declarações se arrependendo do tom adotado na série. À Folha, em 2022, disse que deveria ter visto antes do vazamento de conversas que havia "um acordo entre procuradores e juízes para tirar Lula da eleição" de 2018.
Um dos últimos espasmos da onda da Lava Jato foi o filme "Três Verões", de Sandra Kongut, lançado durante a pandemia, em 2020, em que Regina Casé interpreta a empregada doméstica de uma família investigada na operação.
A prometida continuação de "A Lei é Para Todos" acabou nunca saindo do papel.
As autoridades da operação nunca esconderam que buscavam na opinião pública respaldo para a continuidade dos trabalhos, sempre ameaçados de paralisação por alguma decisão judicial em Brasília.
Para ela, a Lava Jato assumiu na época um certo "caráter de campanha" anticorrupção.
"Essa campanha, ela tem características muito novelescas e muito maniqueístas, que é o que as pessoas gostam, é o que entretém. Então, de alguma forma, o conteúdo é muito atraente do ponto de vista da opinião pública. As pessoas gostam de falar mal de política, gostam de confirmar as suas visões preexistentes e negativas. É um tema que mobiliza muito e que cola muito", diz a professora.
Ela é coautora do livro "Prosecutors, Voters and the Criminalization of Corruption in Latin America" (Procuradores, Eleitores e a Criminalização da Corrupção na América Latina"), que analisa os efeitos da Lava Jato em diversos países.
"A luta contra a corrupção, da maneira como ela foi feita, pega atores que estão ali, juízes, procuradores, a força-tarefa e tal, e que vão limpar a política, que vão salvar a gente desses grupos corruptos, autointeressados, que não tem disciplina partidária, que não tem ideologia."