Morte de sindicalista de Manaus dias após golpe de 1964 se assemelha ao caso Herzog
MANAUS, AM (FOLHAPRESS) - O tempo vai varrendo tudo. Embaralha versões sobre uma mesma história, transforma uma casa em ruína, empresta a um imóvel um aspecto de decadência. Mas, na sede do Sindicato dos Estivadores do Amazonas, perto do porto de Manaus, dois gestos simples tentam confrontar esse aspecto cruel do tempo. E buscam garantir, ainda que minimamente, aquilo que se chama de memória.
No salão principal do sindicato, onde estivadores descansam nesses dias abafados e chuvosos na Amazônia, uma placa é mantida em bom estado de conservação. Tem mais de 60 anos e registra o nome do presidente do sindicato no momento da construção e inauguração da sede própria, em 1960: Antogildo Pascoal Viana.
Na sala do atual presidente, um quadro com a pintura de um homem -jovem, de bigode, vestindo terno e gravata- foi fixado no alto da parede, num ponto facilmente alcançado pelos olhos. É Antogildo, segundo os estivadores que hoje representam os trabalhadores de terminais portuários em Manaus.
"Eu achei essa foto, essa pintura, enrolada com sacos pretos e estopa. Foi em 2017. Mandei limpar e fixei na parede", afirma Ivo Nascimento, 47, presidente do sindicato. "Antogildo levantou esse sindicato, essa sede. Sumiu e ninguém sabe o paradeiro", diz Adevaldo Fonseca, 62, diretor da entidade dos estivadores.
Antogildo foi um dos 434 mortos e desaparecidos políticos da ditadura militar instaurada com o golpe de 1964, conforme relação elaborada pela Comissão Nacional da Verdade.
Era uma liderança sindical expressiva no Amazonas, em ascensão e com o início de destaque em nível nacional. Liderou trabalhadores que simbolizavam, naquele momento, a rotina amazônica nos ambientes urbanos da região. No começo da década de 60, cerca de 900 estivadores atuavam no porto de Manaus, uma cidade que não tinha 300 mil habitantes (hoje são 2 milhões).
Antogildo morreu aos 36 anos, e seu caso é um dos suicídios induzidos ou simulados -e nunca devidamente esclarecidos- por agentes da repressão após o golpe de 64, conforme os documentos produzidos após o fim da ditadura.
O caso mais conhecido é o do jornalista Vladimir Herzog, torturado e morto em 1975 em unidade do DOI-Codi do Exército. Os militares forjaram uma versão de suicídio.
No ano do golpe militar, houve casos diversos de suicídios, em que há contestação quanto à veracidade das versões oficiais. A morte do líder dos estivadores de Manaus foi um desses casos.
Sessenta anos após a morte, uma efeméride que se confunde com a do próprio golpe militar, quase não há memória, lembrança, investigação e resposta por parte do Estado a respeito do que efetivamente ocorreu.
A Presidência da República, em 2006, reconheceu a responsabilidade do Estado pela morte de Antogildo e autorizou uma indenização de R$ 100 mil à filha dele, Maria de Fátima Viana Rodrigues. Era o primeiro mandato do presidente Lula (PT).
Agora, em seu terceiro mandato, Lula vetou qualquer rememoração, crítica ou pedido de desculpas nos 60 anos do golpe engendrado pelos militares.
No sindicato dos estivadores, que concentra hoje bem menos trabalhadores, em razão da automatização dos processos de transporte e navegação, a história de Antogildo vai se perdendo em versões.
"O que sei é que ele foi morto em Belém", diz Ivo, o atual presidente. "A história que ouvi é que ele se matou em São Paulo", afirma Adevaldo, cujo pai conviveu com Antogildo; eram vizinhos em Manaus. Adevaldo diz ser afilhado do líder sindical morto nos primeiros dias pós-golpe.
A casa da filha de Antogildo está abandonada. Maria de Fátima não mora ali há cerca de 20 anos, segundo vizinhos. Teria se mudado para São Paulo. A reportagem não conseguiu contato com ela ou com outros familiares.
O líder dos estivadores não morreu em Belém ou São Paulo, mas no Rio de Janeiro. A versão oficial é de que ele teria se jogado do quinto andar do prédio de um hospital -o atual Hospital Federal de Bonsucesso.
Antogildo vivia na cidade desde o ano anterior. Atuava como tesoureiro da Federação Nacional dos Estivadores.
"Ao longo de todo o regime ditatorial, tornou-se prática comum dos agentes da repressão simularem as execuções, que promoviam, como se suicídios fossem", cita o relatório da Comissão Nacional da Verdade, de 2014, no capítulo dedicado ao sindicalista amazonense.
"Diante das investigações realizadas, conclui-se que Antogildo Pascoal Viana morreu em decorrência de ação perpetrada por agentes do Estado brasileiro, em contexto de sistemáticas violações de direitos humanos promovido pela ditadura militar", afirma o documento, que recomenda identificação e responsabilização dos agentes envolvidos.
O estivador era vigiado pelo Estado, que se referia a ele como "perigoso comunista e agitador social", uma referência feita mesmo depois de sua morte, segundo a Comissão da Verdade.
A viúva do sindicalista contestava a referência. "Meu falecido marido, até nos últimos momentos de vida, afirmava não ser comunista", disse Idelzuita Viana, em 1996, em carta no processo que solicitava reparação pela morte de Antogildo. Ela morreu no ano seguinte.
No processo, apresentou-se como "viúva do sr. Antogildo Pascoal Viana, morto por perseguição da polícia durante a Revolução de 1964". "Sei que minha vida pessoal não interessa a ninguém, mas até alguns anos, e mesmo após a anistia, esperei que ele voltasse, que fosse um engano", escreveu.
Ela apresentou um bilhete que teria sido deixado pelo marido pouco antes do suposto suicídio. "Não podia suportar mais tanta doença e fraqueza mental", cita o bilhete, que especifica onde ele queria ser enterrado em Manaus.
Antogildo foi enterrado no Rio, como indigente, e o corpo desapareceu seis meses depois, segundo relatos de familiares sobre uma busca pelo corpo para tentativa de transporte ao Amazonas.
Em uma carta ao então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), em 2001, a filha do estivador afirmou: "Os órgãos de segurança deram a morte como suicídio, porém todos sabemos que as primeiras mortes de 1964 eram de 'suicidados'. Os arquivos militares não se abrem para que possamos ter acesso a informações, então ficamos no limbo da história."
Um dossiê sobre mortos e desaparecidos políticos diz que Antogildo foi torturado e morto por agentes de segurança do Rio. O pedido de reparação afirma que o caso se enquadra em suicídio na iminência de prisão ou decorrente de sequelas psicológicas deixadas por atos de tortura praticados por agentes do Estado.
O historiador e pesquisador César Augusto Queirós, professor da UFAM (Universidade Federal do Amazonas) e coordenador de estudos sobre a ditadura, reconstruiu em um artigo de 2020 episódios que ajudam a explicar a morte de Antogildo.
Em 31 de março de 1964, véspera do golpe, a sede da Federação Nacional dos Estivadores foi invadida por fuzileiros navais e houve conflitos com trabalhadores, com lançamento de bombas de gás lacrimogênio pela janela e prisão de sindicalistas, segundo o historiador. Já era o curso do golpe, com intervenção em sindicatos -cerca de 350, somente em abril.
"Antogildo foi uma das vítimas dessa impiedosa perseguição", afirma Queirós. "Alguns dias após a prisão, seu corpo foi encontrado no dia 8 de abril de 1964, depois de supostamente ter se atirado da janela do quinto andar. De fato, Antogildo foi torturado até a morte e lançado do prédio com o intuito de mascarar as reais causas de sua morte."
A prática de fazer com que execuções parecessem suicídios era comum, segundo o historiador. Ele acredita que o bilhete deixado pode ter sido escrito "por meio de violência, coerção e/ou ameaças e em uma situação de cárcere".
"Antogildo foi uma das primeiras vítimas do golpe de 1964", afirma o professor. "Com ele, morreu uma parte importante das lutas do movimento sindical amazonense e brasileiro."
A sede do Sindicato dos Estivadores do Amazonas, apesar da ampliação da abrangência geográfica (antes era só Manaus), anda esvaziada.
O prédio construído e inaugurado na gestão de Antogildo, que embarcava em movimentos grevistas de bancários e tecelões, não tem a vibração do sindicalismo de 60 anos atrás. Os estivadores ativos não chegam a 300.
O porto de Manaus, no rio Negro, não conta mais com a presença dos estivadores, que atuam em terminais novos que foram surgindo no curso do rio na área urbana. Parte desses terminais parou de requisitar os trabalhadores, que se dizem lesados e sem direitos trabalhistas há anos. É essa, hoje, a principal preocupação do sindicato.