Fila de transplantes tem 50 mil brasileiros aguardando por órgão

Em função da pandemia, número de procedimentos diminuiu no país como um todo. No entanto, há crescimento em algumas unidades transplantadoras, como ocorre na Santa Casa de Juiz de Fora

Por Renan Ribeiro

Equipe de médicos da Santa Casa ressaltou a importância do diálogo sobre o desejo de se tornar um doador de órgãos

O número de transplantes de rim em Juiz de Fora, realizados por meio de cirurgia de vídeo (nefrectomia laparoscópica) na Santa Casa de Misericórdia, ultrapassou 100 casos, todos exitosos, conforme a equipe médica. O procedimento é menos invasivo e permite diminuir os riscos tanto para os doadores, quanto para os receptores. No Dia Nacional da Doação de Órgãos, celebrado em 27 de setembro, a equipe apresentou dados atuais sobre os transplantes no Brasil e em Juiz de Fora, chamando a atenção da sociedade para a importância do diálogo aberto sobre o desejo de doar órgãos.

O nefrologista e presidente da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), Gustavo Fernandes Ferreira, demonstrou o impacto que a pandemia representa para a realização de transplantes no Brasil. Houve uma queda acentuada no número de operações dessa natureza, quebrando uma sequência de crescimento na atividade de transplantes, o que ocorreu, paulatinamente, em 2020, 2021 e no primeiro semestre de 2022. Isso fez com que a fila de pessoas aguardando pela doação de órgão chegasse a 50 mil, número nunca antes registrado na história. Embora o Brasil seja o país com o maior número de transplantes realizados por sistema público no mundo, o país ainda está abaixo da metade da lista entre as nações que realizam o procedimento, com apenas 13,8 transplantes por milhão de habitantes.

Para suprir a demanda existente de transplantes, seria necessário realizar 60 procedimentos por milhão de habitantes. Realizando essa marca, a lista de espera ficaria estável. No entanto, o número de doadores vivos chegou a 2,7 em 2021. O de doadores vivos atingiu pico de 17,5 cirurgias por milhão de habitantes em 2019, mas depois reduziu. "O que acontece no nosso país é que, a quantidade de doadores falecidos estar crescendo, o número de doadores vivos caiu e a nossa necessidade continua igual. Em média, só realizamos metades dos transplantes que deveriam ser realizados. Temos ai uma diferença que mantém essa fila crescendo no Brasil", explica Gustavo.

Embora no contexto nacional a situação seja muito preocupante, em Juiz de Fora, a equipe conseguiu se estruturar durante a emergência em saúde causada pela Covid-19 e aumentou o número de transplantes realizados. Em 2019, 414 pacientes buscaram a avaliação para o transplante na Santa Casa. Em 2020, transplantes com pacientes vivos foram suspensos, para diminuir os riscos de contágio pela Covid-19, tanto para o paciente, quanto para o doador. Entre 2021 e 2022, outros 365 pacientes procuraram a avaliação para o transplante. Atualmente, há 330 pessoas aguardando por transplante em Juiz de Fora.

Os dados da pesquisa, conforme Gustavo, mostram que 80% dos transplantes com doadores vivos estão concentrando em apenas três estados: São Paulo, Minas Gerais e Paraná, mesmo tendo outras unidades importantes e equipadas em outros estados. "Existe uma preocupação com o desenvolvimento da atividade de transplante com doador vivo, que é uma ótima forma de doação, que não tem sido feito de maneira adequada. Os dados de 2019 mostram a capacidade dos centros, porque pegam a situação antes da pandemia." A Santa Casa é o quarto hospital do país em número de transplantes renais com doador vivo nesse período, 44 ao todo. "Aqui no Sudeste estão os oito principais  realizadores deste tipo de procedimento e eles sozinhos representam 50% dos transplantes realizados no país. Para se ter uma ideia, no Brasil há 145 instituições habilitadas para fazer transplantes. Hoje, somente 8 instituições realizam transplantes com doadores vivos. Isso é uma preocupação muito grande, do ponto de vista da saúde pública", ressalta o nefrologista.

Conscientização

Em outra pesquisa, da ABTO em parceria com o Instituto IBOPE, realizada no ano passado, foi medida a percepção da população a respeito da doação de órgãos. Um total de 1976 brasileiros participaram da ação, que questionava sobre o desejo de ser ou não doador após a morte. Ao todo, 67% dos entrevistados responderam que gostariam de doar os órgãos, somente 30% disseram que se recusariam a doar."  Temos mais da metade da população com desejo de ser um doador. E isso, no momento, não se transfere, quando o ato acontece. Temos hoje 34% de recusa familiar.  Existe uma disparidade, entre a porcentagem da sociedade que tem o desejo de ser doador, em relação aqueles que efetivamente se tornam doadores, com a negativa familiar", considera Gustavo Fernandes Ferreira.

Outro dado que chama a atenção, conforme o nefrologista, apenas 52% das pessoas conversou com a família sobre esse desejo, enquanto 46% não chegou a conversar e os outros dois não sabem se querem ou não conversar com suas famílias sobre esse assunto. "Então, a gente precisa conversar mais  sobre esse diálogo com a família para que isso seja respeitado. Outro dado 71% da população conhecia ou conhece alguém que recebeu um órgão ou esteve na fila por algum momento. Demonstram que a atividade de transplante atinge mais da metade das pessoas no nosso país, é algo que impacta a vida das pessoas". 

A maioria das pessoas que recusa, não sabem apontar um motivo, ainda conforme a pesquisa. A segunda causa, seria o medo da alteração do corpo, quando a cirurgia de doação é feita.  "Isso deve ser desmistificado. Porque toda vez que é realizada a doação, o corpo é devolvido para a família de forma íntegra, não tem nenhuma mutilação, para que não possa voltar para a despedida da família", salienta Gustavo. Outros motivos são não ter interesse em conversar sobre a morte ou motivos religiosos. "Sabemos que não existe religião que faça contraposição à doação de órgãos. Até as Testemunhas de Jeová aceitam os órgãos, desde que não receba transfusão sanguínea. As religiões apoiam a doação de órgãos", argumenta o médico.

Outro medo que precisa ser esclarecido está relacionado ao tráfico de órgãos. "Em um país que tem todo o seu sistema de transplante regulado, é inexistente esse tipo de prática. É um sistema muito complexo. Para se fazer um transplante, a complexidade e tecnologia que envolve estar em um mercado paralelo é impossível. Você não vai ter resultado nenhum, nenhum benefício. No nosso país, não existe nenhuma discussão sobre o mercado paralelo de órgãos", detalha o presidente da ABTO. Ele ainda ressalta que o Ministério Público atua com rigor na fiscalização, reduzindo, ainda mais as chances de ocorrer tráfico.

Setembro Verde

O cirurgião Gláucio Souza explicou que o maior desafio do pós-pandemia tem sido retomar a confiança da população nos processos.  "De uma maneira geral, muitas pessoas ainda têm medo de procurar o sistema de saúde, acreditando ainda que exista algum resíduo de pandemia e isso, na verdade, já se dissipou. É importante fazer com que as pessoas procurem os centros transplantadores. Por  meio dos serviços de diálise, os pacientes são estimulados a procurar o centro transplantador e lá vamos conversar com eles sobre a doação em vida. Por outro lado as terapias intensivas passaram por uma grande reestruturação ao longo da pandemia para atender àquela demanda. A abordagem por morte por critério neurológico ela passou por mudanças e isso, de certa forma, prejudicou o processo de doação".

O cirurgião vascular Márcio Souza pontuou que para se tornar um doador, o cidadão precisa expressar sua vontade.Mas para além da manifestação do desejo de doar, também precisa apresentar boa saúde. "Depois de passar por toda uma bateria de exames, a última análise é a de compatibilidade entre a anatomia desse paciente, dos vasos, dos rins, suas dimensões, a posição no corpo. Para que ele seja um paciente adequado ou com risco menor. para a doação por meio da vídeo laparoscopia. Se ele tiver algo que impeça ou dificulte essa doação via laparoscopia, continua sendo um doador adequado para a cirurgia convencional, aberta. Aí escolhemos o que é melhor para o doador e para o receptor."

Procedimentos atualizados

A nefrectomia laparoscópica, segundo o urologista, Pedro Bastos, técnica assistida por vídeo é utilizada em outros procedimentos, no entanto, ainda é pouco empregada nas cirurgias renais, com doadores vivos. "Traz um conforto não só para o paciente, quanto para equipe. Ela permite uma dissecção mais segura das estruturas renais, dos vasos e conseguimos manipular menos esse rim. Já passamos a marca de mais de 100 transplantes exitoso e o pós operatório muito bom", comenta. Não apenas o aspecto estético das marcas da cirurgia são melhores, como também é possível fazer a alimentação precoce, reduz o custo do sistema e o paciente precisa ficar um tempo menor internado. No caso dos doadores de outras cidades, os médicos costumam deixar um tempo maior de internação, por prudência. "Mas um paciente residente em Juiz de Fora que for operado hoje pode ter alta amanhã, conseguindo se alimentar no mesmo dia. É um procedimento  seguro e confortável para a equipe. Que pode baixar a fila de doadores. Se o paciente tem um procedimento pelo qual vai passar com a possibilidade de receber alta rápida, tem melhores resultados em termos de dor e bem mais confortável que a via clássica, isso se torna um estímulo para a doação também."