Companheiro de viagem

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Companheiro de viagem
 Juliano Nery 9/07/2013

Companheiro de viagem

Lá no meu pé de serra
Deixei ficar meu coração
Ai, que saudades tenho
Eu vou voltar pro meu sertão
No meu roçado trabalhava todo dia
Mas no meu rancho tinha tudo o que queria”

(No meu pé de serra, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira)


Estava absorto em meus problemas pessoais, atendendo a um telefonema, quando ele chegou em frente ao meu assento, no corredor do ônibus. Logo, calculei, que ele queria acessar a poltrona próxima à janela, ao que, automaticamente, liberei a passagem para o companheiro de viagem. Continuei falando ao telefone, enquanto percebia que o meu colega de trajeto travava uma luta inglória e desajeitada na tentativa de abrir a janela do coletivo, que iria varar madrugada até a divisa do estado mineiro com a Bahia.

“Companheiro, esta janela não abre”, informei, interrompendo a conversa telefônica, compadecido com o dilema do rapaz.

“Como não abre? Comprei a cadeira perto da janela, justamente, para ir tomando vento”, indignou-se.

Interrompi mais uma vez a ligação.

“Este ônibus tem ar condicionado. Espere o motorista virar a chave, que você vai ver que o clima fica agradável...”

Ele fez cara de que não botava muita fé na minha conversa, mas, foi só o ônibus ligar o motor, que ele sentiu o ambiente esfriar rapidamente. Ar condicionado. Uma das maravilhas do nosso tempo.

“Agora ficou foi gelado demais.”

O rapaz parecia não se importar com o fato de que eu estava ao telefone. Queria era conversar. Como já passava das nove da noite e nessa altura do campeonato e o que não havia sido resolvido durante aquele dia ficaria pendente para o próximo sol, resolvi desligar o celular e dar atenção ao aflito viajante.

“Fique tranqüilo, rapaz! Você se acostuma com o ar.”

“Não sei, não! Ainda nem chegou na boca da madrugada e já está nessa friagem danada... E eu ainda vou viajar noite adentro!...”, preocupou-se.

Vi que ele era bem simples e que não entendia bem a dinâmica de funcionamento do ar condicionado, grande maravilha do nosso tempo. Tentei acalmá-lo.

“O motorista controla o ar lá na cabine. O ar não vai esfriar mais do que isso.”

“Será?”

Dei um sorriso.

“Pode confiar em mim. Mas, para onde você está indo, afinal?”

“Estou indo para Jequitinhonha... Chego lá amanhã de manhã e embarco para a minha cidade, que fica mais umas três horas de lá.”

Quando ele mencionou Jequitinhonha é que lembrei que o ônibus iria seguir até Salto da Divisa, já quase chegando na Bahia. Emaranhado em meus problemas, confesso que nem dei muita bola para o itinerário, quando comprei a passagem da capital para João Monlevade. A maioria dos ônibus que saíam de Belo Horizonte rumo ao leste, passavam por lá, portanto, nem me preocupei. Mas, havia gente que iria muito mais longe, como era o caso do companheiro de viagem.

“Como é mesmo o nome do lugar para onde você vai? Está indo visitar a família?”

“Minha cidade se chama Águas Formosas. Estou indo pra lá para ficar de vez... Por aqui, não fico, não!”

Ele parcia bastante contrariado.

“Não gostou daqui da capital?”

“Gostei nada! Faz três meses que cheguei e só arrumei emprego pra ganhar salário mínimo. E ainda tem desconto. Disseram que eu ganharia hora extra. Trabalhei até tarde da noite, mas quando chegou o salário, nada.”

E contou da obra em que estava trabalhando na Rua São Paulo. Firma grande, construção de um prédio. Mas, o salário, que era bom, nada. A vida no Vale do Jequitinhonha, região conhecida pela pobreza, por incrível que pareça, era mais farta.

“Nem lá na minha cidade eu ganhava tão mal. Lá, tocava um botequim, coisa simples, mas honesta. É mais negócio voltar pra lá. Aqui, eu estava ralando demais, pra não ganhar nada no final...”

“Por que veio pra cá?”

Era uma pergunta inevitável. Ele não titubeou ao responder o óbvio.

“Para ganhar dinheiro. Vim porque um amigo que mora aqui, disse que ia ser uma boa. Mas, que nada. Em Águas Formosas eu tinha carne todo dia. Criava uns porcos e umas galinhas no sítio. Não passava esses perrengues...”

Fiquei chateado com a má experiência do companheiro de viagem. Belo Horizonte, cidade que tanto gostava, não parecia ser tão fechada, como ele me fazia acreditar naquele momento.

“Nem dinheiro para as mulheres estava sobrando.”

“Que mulheres...”

“Ali onde eu trabalhava tinha um monte de mulher da vida... E eu sem nenhum tostão no bolso. Gastava tudo no ônibus de casa pro trabalho, do trabalho pra casa e ajudando lá na casa do meu amigo. Não saí pra tomar uma cerveja nesses tempos...”

“Que dureza!”

Diante de tanto perrengue, não havia muito o que dizer.

“A vida por aqui, na cidade grande, é muito preta e branca.”

Fez-se um silêncio. Não havia o que argumentar em contrário. A cidade grande tem realmente sua faceta madrasta para muitos. Ali, havia um caso relevante. E fui obrigado a dar razão para o movimento de volta às origens. Era melhor voltar para a vida sertaneja, pro lugar onde nasceu e que ainda enxerga possibilidades de ser feliz. De ver colorido.

Passado um tempo e aproveitando o fato de ter aberto o seu planejamento para um desconhecido, o companheiro de viagem, também investigou.

“E você? Gosta da capital?”

Fiquei inibido em dizer das minhas boas experiências em solo belorizontino. Da felicidade que é sentar nos bares instituídos a cada três portas, de flertar com a beleza da mulher mineira, de sentar nos bons restaurantes da Savassi e de ter condição de pagar por eles.

“Na verdade, acho que você tem razão! A capital não é essa coca-cola toda.”

“E não é? É uma cidade para poucos!”

Aproveitei para arrematar.

“E digo mais, também estou indo embora e acho que você está muito certo!”

Ele ficou satisfeito, com um sorriso no rosto. Acomodou-se e logo pegou no sono. Parecia que o fato de ter sua atitude de ir embora aprovada por mim o deixava mais confiante.

Quando, enfim, veio a parada em João Monlevade, meu destino, saí pé sobre pé para não acordá-lo. Não queria que aquela última alegria desse lugar à tristeza e ao dissabor de suas experiências na cidade grande.


Juliano Nery é jornalista, professor universitário e escritor. Graduado em Comunicação Social e Mestre na linha de pesquisa Sujeitos Sociais, é orgulhoso por ser pai do Gabriel e costuma colocar amor em tudo o que faz.