Saber cuidar
Ganhei de Natal, de minha mãe, pessoa atenta aos traçados do mundo, o livro de Leonardo Boff, Saber cuidar - ética do humano e compaixão pela Terra, presentão para quem dele só conhecia a Fábula da Águia e da Galinha.
Com ele, aprendi que a palavra cuidar vem do latim cogitare (cogitar), que significa imaginar, meditar, fenômenos que antecedem a razão e a vontade; que o cuidado faz parte da essência humana, é aquilo que temos de mais transcendental e profundo: o singelo gesto de cuidar de nossas crias ou de nossos enfermos é algo instintivo, antecede a civilização; a medicina veio aprimorar aquilo que já fazíamos espontaneamente; o sucesso evolutivo de nossa espécie se deu aí, na onipresença do cuidado.
Já reparou quanta coisa fazemos para cuidar do outro? Somos capazes de pular na correnteza da chuva para salvarmos um desconhecido. É incrível, mas algumas fêmeas não gestantes produzem leite quando em contato com órfãos. E por que será que passarinho que cai na nossa casa vai para a caixinha de sapato? E crianças e velhinhos, então? Eles representam nosso elo entre o que já foi e o que virá. Vemo-nos por meio deles, temos compaixão por eles, e tudo isso porque somos seres essencialmente cuidadores...
Mas por que mesmo, com tanto altruísmo latente, vivemos uma crise civilizatória do projeto humano? Temos índices alarmantes de destruição do nosso planeta, estimulamos a cultura da violência e do supérfluo, nosso modo de produção "dá certo", principalmente, porque exploramos os mais fracos...
Boff enxerga o capitalismo materialista de nosso tempo como fonte deste mal, pleno de contradições operacionais que o obrigam a se autodestruir, a começar pelo conceito de uso ilimitado dos recursos naturais (hoje o capitalismo sustentável — esperança de futuro — tem em seus pilares o reconhecimento dos limites físicos da terra).
A perda de conexão com o divino faz com que aquilo que não é cientificamente comprovado não exista: grande equívoco, porque sabemos que a vida, filosoficamente, é mistério... Brincamos de Deus e acreditamos ser o centro do universo, não nos vemos como simples parcela.
O filme (que não vi) Fim dos tempos, de 2008, do diretor M. Night Shyamalan, mesmo diretor de Sinais e A Vila, é um suspense em que pessoas vão morrendo por uma toxina desconhecida liberada pelas plantas, como um mecanismo de defesa contra as constantes ameaças dos humanos. A ideia é boa.
Matamos animais para nossa alimentação com técnicas primitivas, lentas e dolorosas. Matamos animais para enfeitarmos nossos pescoços; matamos por diversão (como na caça amadora). Entendo que a superpopulação de animais compromete a sobrevivência de outras espécies e que deva haver controle de indivíduos, mas não como esporte; não conseguiria ter prazer com o sofrimento do outro, sadismo, crueldade consentida.
Somos a sociedade do estresse, do consumo, do desperdício, do descartável e dos fast-foods, temos mais obesos que famintos, crianças acham que comida é produzida em fábricas, e muitas já o são... Perdemos nossa ligação com a natureza: ficamos quanto tempo sem pisar na grama, tomar banho de chuva ou botar a mão na terra? Contatar a natureza é conversar com aquilo que há de mais verdadeiro e ancestral em nós...
Por nos distanciarmos da nossa verdadeira essência, a do cuidado consigo e com as coisas deste mundo, mergulhamos em antidepressivos, em drogas lícitas e ilícitas, e nunca fomos tão infelizes...
É, sim, tempo de despertar para uma nova ética do cuidado, que extrapola os princípios da necessidade do aqui e agora, do desejo de dominar o outro; é tempo de exercitarmos o convívio, a generosidade, de buscarmos o que queremos ser de verdade; é tempo de trocar ao invés de exigir...
Abraço verde!
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Cecília Junqueira é gestora ambiental, pós-graduada em problemas ambientais urbanos
e integrante da "Mundo Verde projetos ambientais".
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