Os erros que cometemos em 64
e o que aprendemos com eles

* Marco Ant?nio Tavares Coelho
01/04/04

Foto ilustrativa O golpe de Estado de 1964 ficar? em nossa Hist?ria como um acontecimento de singular relev?ncia. Os que colheram os louros da vit?ria, como os que carregam o fardo da derrota, entendem que 40 anos atr?s houve uma profunda mudan?a de rumos na vida nacional. Da? a import?ncia de um exame mais acurado dos fatos que culminaram com a deposi??o de Goulart em 1964. Como participei ativamente naqueles epis?dios, vejo-me obrigado a examinar a seguinte quest?o: quais os principais erros das for?as derrotadas em 1964?

Creio que eles resultaram de uma an?lise incorreta da correla??o de for?as. Erro grav?ssimo que nos levou a n?o tra?armos, como um elemento b?sico de nossa estrat?gia, a defesa da democracia. Que elementos caracterizam a falsidade daquela aprecia??o que deu origem a t?o graves equ?vocos?

Para fundamentar minha tese, basta recapitular a evolu??o dos acontecimentos a partir de setembro de 1961. A derrota dos generais que tentaram impedir a posse de Goulart, foi interpretada por n?s como uma mudan?a profunda, de qualidade, na situa??o pol?tica do Brasil. E aquela an?lise foi calamitosa porque envolveu um ju?zo a respeito do papel das for?as armadas na vida brasileira. Isto ?, nos levou a considerar que elas n?o mais poderiam intervir na cena pol?tica, para defender um "status quo" injusto e antipopular, que secularmente beneficia um reduzido grupo de privilegiados.

Creio que eles resultaram de uma an?lise incorreta da correla??o de for?as. Erro grav?ssimo que nos levou a n?o tra?armos, como um elemento b?sico de nossa estrat?gia, a defesa da democracia.
Esse entendimento incorreto era refor?ado por dois argumentos. Primeiro, que existia nas for?as armadas um forte "esquema de oficiais nacionalistas" e que, em segundo lugar, o movimento dos sargentos era um obst?culo ao desencadeamento de um golpe. Ademais, exageravam-se os avan?os da organiza??o sindical e de sua capacidade de paralisar o pa?s na eventualidade de um golpe militar. N?o ? verdade que essa foi a an?lise que proclamamos aos quatro ventos?

Al?m de lan?armos essa aprecia??o sobre o quadro militar, que t?o s? estava alicer?ada em nossos desejos e sonhos, incorremos tamb?m no erro de n?o reconhecer que a vit?ria sobre a c?pula militar fora alcan?ada, em 1961, porque ent?o defend?amos a exig?ncia do respeito ?s normas constitucionais, porque naquela oportunidade desfraldamos com firmeza a bandeira da democracia. N?o acentuamos tamb?m que o fracasso dos golpistas, naquele epis?dio, basicamente decorreu da divis?o dentro das for?as armadas, mas que esta ruptura na cadeia de comando militar se devia ? press?o da opini?o p?blica em favor da legalidade.

Com a posse de Goulart no Pal?cio do Planalto, passamos a viver uma situa??o in?dita no Brasil. Pois assumiu a presid?ncia da Rep?blica uma personalidade ligada ?s correntes populares e aos meios sindicais, e que dialogava abertamente com os comunistas. Panorama que resultava, em grande medida, de um fato inesperado, o gesto tresloucado da ren?ncia de J?nio, mas que era determinado tamb?m pela ascens?o vigorosa das lutas populares e um impressionante processo de organiza??o dos trabalhadores como, at? ent?o, nunca sucedera em nosso pa?s.

Em sendo assim, como n?o podia deixar de ser, esse cen?rio in?dito turvou nossos ju?zos. De certa forma, houve uma embriaguez causada pelo capitoso vinho da vit?ria.

De um lado, os resultados do plebiscito nos favoreceram, mas eram mais ou menos previstos, porque a opini?o majorit?ria dos brasileiros repudiava aquele remendo "ad hoc" da Constitui??o.
Assim chegamos ? antev?spera do golpe. No curso de 1963 defrontamos um cen?rio ambivalente, complexo e contradit?rio. De um lado, os resultados do plebiscito, para decidir sobre a vig?ncia ou n?o do parlamentarismo, nos favoreceram, mas eram mais ou menos previstos, porque a opini?o majorit?ria dos brasileiros repudiava aquele remendo "ad hoc" da Constitui??o. E que, naquela altura, os diversos aspirantes ? presid?ncia da Rep?blica, desejavam enterrar rapidamente o parlamentarismo de fancaria.

Ent?o, Goulart assumiu os poderes vigentes no regime presidencialista. Por?m, o quadro foi se modificando com rapidez e o governo come?ou a perder o apoio de diversas for?as pol?ticas e sociais. Recorde-se que, nas elei?es de 1962, para alguns governos estaduais, excluindo-se Pernambuco e o Estado do Rio, as correntes mais retr?gradas venceram nas principais unidades da Federa??o. Ademais, naquela ?poca, a viagem de Goulart aos Estados Unidos foi um duplo fracasso, pois n?o conseguiu amainar nossos conflitos com a mais forte pot?ncia do mundo.

Uma agenda foi apresentada por Goulart ao Congresso, formulando como pontos essenciais a realiza??o de v?rias mudan?as substanciais no pa?s, na base de um plano elaborado por Celso Furtado. Mas, tudo dependeria da aprova??o do Poder Legislativo. E qual era a posi??o dos partidos no Senado e na C?mara do Deputados?

O PSD, partido com o maior n?mero de votos nas duas casas do Parlamento, afinado com suas bases tradicionais, evoluiu para uma postura de resist?ncia ? pol?tica do governo. Tal fato ocorreu por duas raz?es: primeiro, porque n?o via com bons olhos as propostas radicais do governo, notadamente a reforma agr?ria; em segundo lugar, porque depreendeu que o governo estava preso numa armadilha e mais cedo ou mais tarde tumultuaria o processo da sucess?o presidencial.

A UDN, que dispunha de grande for?a no Congresso e no cen?rio nacional, mobilizou-se de forma compacta na campanha contra Goulart, passando a realizar um trabalho de aliciamento de chefes militares para o golpe de Estado.

Mas o que selou, em definitivo, a nossa derrocada foi um dado crucial na vida pol?tica brasileira - o encaminhamento da sucess?o presidencial, que deveria acontecer em 1965. Como as correntes pol?ticas se colocaram nessa quest?o?
O PTB e os partidos e grupos de esquerda, em seu conjunto, eram influenciados pelas lutas populares e sindicais e consideravam como essencial acelerar o processo de mudan?as fundamentais na vida brasileira. Por isso n?o firmaram uma posi??o n?tida, unit?ria e vigorosa para enfrentar as amea?as que pairavam no horizonte. Recorde-se, por exemplo, que, dois meses antes do golpe, a dire??o do PCB declarou que esse partido situava-se como "oposi??o ao governo de Goulart", argumentando que este desenvolvia uma pol?tica de concilia??o com setores pol?ticos n?o comprometidos com as reformas.

Resumindo, por diversos raz?es, n?o havia a menor possibilidade de se obter no Congresso a aprova??o das medidas solicitadas por Goulart. Em conseq??ncia, pairava no ar a suspeita de que o governo acabaria por intentar um golpe de Estado, a fim de impor "na marra", conforme se dizia, as reformas de base e mudan?as constitucionais relacionadas com a elei??o do futuro presidente da Rep?blica.

Mas o que selou, em definitivo, a nossa derrocada foi um dado crucial na vida pol?tica brasileira - o encaminhamento da sucess?o presidencial, que deveria acontecer em 1965. Como as correntes pol?ticas se colocaram nessa quest?o? O governo Goulart via aproximar-se a hora da sucess?o e n?o estava preparado para enfrent?-la. N?o dispunha de candidato capaz de derrotar Carlos Lacerda. As for?as populares vetavam o candidato do PSD (Kubitschek), por considerar sua elei??o como um retrocesso inconceb?vel. Brizola era ineleg?vel e muito radical para diversas for?as que compunham o governo. O mais grave, por?m, foi o entendimento surgido, que a melhor solu??o seria a tentativa de reeleger-se Jo?o Goulart; o que n?o era permitido por normas constitucionais.

Assim, a nau da insensatez continuou a marcha para o desastre total. Sucedeu tudo o que poderia acontecer para desgastar e isolar o governo Goulart: em 1963, a infla??o se transformou em hiperinfla??o e houve um decr?scimo do produto nacional per capita; os Estados Unidos come?aram a estimular o golpe de Estado; houve tamb?m uma despudorada campanha contra o governo constitucional nos meios de comunica??o, ofensiva financiada por empresas estrangeiras. Devido a essas atividades, nossos advers?rios obtiveram o apoio de amplos setores da popula??o, assustados com a violenta prega??o anticomunista, acionada por destacadas personalidades cat?licas. Enfim, todas correntes reacion?rias juntaram suas for?as para desmoralizar o governo e com aud?cia deram pleno respaldo ? conspira??o nos quart?is. O governo e as correntes populares reagiram de forma tumultuada e confusa. Erros sucessivos eram cometidos na condu??o dos assuntos administrativos e pol?ticos. Ao inv?s de tranq?ilizar a na??o, o governo subia o tom das amea?as. Ao mesmo tempo, as a?es aventureiras, como a revolta dos sargentos e dos marinheiros, isolaram os militares legalistas e o governo, pois justificaram as acusa?es de que partia do Pal?cio do Planalto a quebra da hierarquia e da disciplina nas for?as armadas.

A conspira??o dos golpistas foi rapidamente vitoriosa, conseguindo imobilizar ou neutralizar os militares que defendiam a legalidade...
Na und?cima hora, houve uma tentativa de evitar a trag?dia: o projeto de San Tiago Dantas de estruturar a "Frente Ampla". Como ? sabido, esse plano fracassou, pois foi imposs?vel obter a concord?ncia das for?as progressistas e das correntes colocadas no centro do espectro pol?tico, como o PSD, em torno de um programa comum de reformas. Contudo, esse n?o foi o ?bice que jogou por terra o projeto da "Frente Ampla". Ele estava previamente condenado ao insucesso por uma raz?o elementar: tudo dependia, na verdade, de um acerto sobre a sucess?o presidencial. Ou seja, uma aglutina??o de esfor?os em favor da candidatura de Kubitschek.

Por termos confundido as nuvens com Juno, o resultado foi inexor?vel e terr?vel. A conspira??o dos golpistas foi rapidamente vitoriosa, conseguindo imobilizar ou neutralizar os militares que defendiam a legalidade, mesmo porque os generais j? haviam conquistado previamente o respaldo de for?as majorit?rias no cen?rio pol?tico e no plano internacional, gra?as ao interesse direto dos Estados Unidos em impedir que o Brasil come?asse a percorrer um caminho semelhante ao de Cuba.

Para se entender o contradit?rio quadro que facilitou o sucesso vertiginoso do golpe, n?o se pode esquecer que uma personalidade democr?tica, como Ulisses Guimar?es, n?o combateu a deposi??o de Goulart. Dado que comprova como n?s nos isolamos, abrindo os flancos para a a??o dos golpistas, interessados vitalmente em impedir o avan?o das lutas populares no Brasil.

De in?cio, nos primeiros dias de abril, parecia at? que apenas ocorrera a derrubada de um presidente da Rep?blica, como sucedeu em 1945 (com Vargas) ou em 1955 (com a deposi??o de Carlos Luz e Caf? Filho). Logo, por?m, ficou claro que as for?as vitoriosas estavam empenhadas numa altera??o profunda no regime pol?tico. A radicalidade do plano dos militares que assaltaram o Poder decorreu do fato de que as correntes reacion?rias sentiram-se profundamente amea?adas diante da imin?ncia de medidas que atingiam seus interesses, face ao crescimento impetuoso das lutas populares e de um processo de organiza??o dos trabalhadores nunca antes visto em nossa p?tria. Assim, passo a passo os militares foram eliminando a ordena??o constitucional de 1946, implantando uma ditadura militar, que sobreviveu durante mais de duas d?cadas.

... o essencial ? a conquista de um regime democr?tico. E que essa ? a quest?o "sine qua non", inclusive para tra?armos a caminhada na dire??o de uma outra sociedade, uma sociedade melhor e mais justa.
O que aprendemos com o golpe de 64 e com a ditadura militar? Em minha opini?o, nos anos de chumbo, vivendo dolorosas experi?ncias, assistindo ao amorda?amento de milh?es de brasileiras e brasileiros, vimo-nos for?ados a aprender uma dur?ssima li??o: a de que, acima de tudo, o essencial ? a conquista de um regime democr?tico. E que essa ? a quest?o "sine qua non", inclusive para tra?armos a caminhada na dire??o de uma outra sociedade, uma sociedade melhor e mais justa.

Passados 40 anos, esse retrospecto provoca a emerg?ncia de sentimentos contradit?rios. H? sensa??o de culpa, pois nessa travessia dos tempos, in?meros combatentes, homens e mulheres da melhor qualidade, n?o sobreviveram. Contraditoriamente, o pa?s cresceu, n?o ficou paralisado, mas consolidou-se uma sociedade absurdamente injusta. Portanto, muitos anos foram perdidos na marcha pelo desenvolvimento social do Brasil, pela melhoria de imensas camadas de nosso povo, gente sofrida e espoliada. Resta agora t?o s? um consolo, o de que muito aprendemos, especialmente, sobre o profundo significado da conquista de um regime democr?tico nestas terras, democracia ampla, s?lida e est?vel. Esse ? o consolo que hoje nos agasalha e que nos cumpre preservar.

(*) Texto preparado para um semin?rio promovido pelo Centro de Filosofia e Ci?ncias, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, intitulado "64 + 40: Golpe e Campo(u)s de Resist?ncia", no dia 29 de mar?o de 2004. O autor ? jornalista, sendo atualmente editor-executivo da revista "Estudos Avan?ados", ?rg?o do Instituto de Estudos Avan?ados da Universidade de S?o Paulo. Comunista, foi eleito deputado federal em 1962. Seu mandato foi cassado em abril de 1964.

Leia mais:
  • 1964: Uma pedagogia interrompida
  • Semin?rio sobre o golpe de 1964 na UFJF


  • Entre na comunidade de notícias clicando aqui no Portal Acessa.com e saiba de tudo que acontece na Cidade, Região, Brasil e Mundo!