Contar a história de um povo, de uma comunidade de forma lúdica, sem afastar suas mazelas e suas lutas por igualdade, requer um malabarismo tão intenso que exige de seus idealizadores, saber qual o tom de um discurso, para conscientizar, refletir e educar, sem que sua exegese seja refutada pela retórica do falso moralismo de incoerência argumentativa.

E por essas elucidações, temos grandes e importantes obras que permeiam entre uma sociedade aristocrata na teoria, mas que literalmente pertencem a essa mesma camada social dos desafortunados, que não se dão conta do quanto precisam urgentemente compreender a necessidade de se enquadrar nesse padrão real de classe, para que assim se possa criar a resistência essencial que trará o peso crucial para a revolução social tão almejada pela sociedade brasileira.

E dentro desse contexto, os dois filmes estrelados por Lázaro Ramos conseguiriam exprimir de forma peculiar, a narrativa convencional sobre essas políticas importantes de transformação e ações combativas contra várias espécies de estigmas sociais existentes no Brasil. Contudo, magistralmente, as duas obras dispensam a elegância da coloquialidade para abordar os principais temas políticos, e “escracham” abertamente sobre eles, funcionando como muitos socos no estômago, o que em tese, gera desconforto para quem se habituou a enxergar o preconceito, como uma forma natural de expressão.

No primeiro filme, temos uma abordagem mais cômica sobre o cotidiano do povo baiano, onde Roque, o ‘protagonista’ da trama é um fanfarrão que sonha em ser cantor, mas que claramente não se curva diante dos sonhos, enfrentando sua dura realidade de ter que trabalhar para sobrevier. E aqui, temos uma eloquência imagética onde, o cortiço que se instala no Pelourinho se encaixa perfeitamente na alegoria de representar uma comunidade plúrima tal qual é a nossa sociedade como um todo.

Nesse espaço acontece de tudo, tem gente de todos os tipos, demonstrando cada qual suas personalidades e convicções, sejam elas pautadas na religião, política ou relevância social. O maior acerto aqui é justamente permitir que a história seja descentralizada, onde o protagonista funciona apenas como fio condutor, que liga as várias tramas pessoais dos demais personagens, permitindo que discursos relevantes sejam externalizados, provocando inevitavelmente o confronto de ideias, inclusive em uma das cenas icônicas que Lázaro executa com Wagner Moura, que está na obra originária.

E com um final arrebatador, que muitos consideram um anticlímax, a ideia não aceita por boa parte do público se encaixa na legitimidade do costume, de esperar que uma história seja resoluta, quando na verdade a vida, a realidade; mais ainda, a realidade dessa comunidade, é como o desfecho dessa primeira trama, interrompida abruptamente pelos seus algozes.

E após quinze anos, Roque está de volta. Agora, perto de realizar seu sonho de ser um cantor famoso. E não diferente do primeiro filme, aqui, há o velho cortiço, com alguns conhecidos e novos personagens para abordar as mesmas questões sociais de seu antecessor. E em tese, poderia parecer mais do mesmo, não fosse a realidade dessa sociedade que insiste em permanecer perpetuando a romantização dos preconceitos raciais, culturais, xenofóbicos, machistas e de questões de gênero.

E embora há certo desequilíbrio no tom dessa nova abordagem, o segundo filme que traz uma cultura genuína, apaixonante, saliente, expressiva e realista da nossa sociedade, também se permite contrapor de forma clara e objetiva, dentro da subjetividade do ser, a reflexão imprescindível da urgência pela ascensão da luta pela igualdade não apenas no discurso, mas na prática.
Ó Paí, ó, tem em sua essência, a originalidade da diversidade que compõe a nação brasileira, de um povo marcado pelo sofrimento e que não deixa de sorrir, mas que em sua construção milita bravamente sobre pautas importantes e necessárias; que atua combativamente sem pudor, mas sem arrogância, na elucidação da iminência de se dissociar desse afastamento político, para que possa haver uma efetiva transformação social em nosso país.

Notas:
Ó Paí, Ó (2007): 9.1 /// Ó Paí, Ó (2023): 8 (disponíveis na Amazon Primevideo)

Divulgação - Ó Paí, Ó (2007) / Ó Paí, Ó 2 (2023)

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Clayton Inacio da Silva

Séries e Filmes

É advogado empresarial e crítico de cinema. No campo jurídico, atua na esfera administrativa, cível e consumerista, além de elaboração e análise de contratos públicos e privados. Como crítico, analisa e comenta filmes de todos os gêneros, que são lançados no cinema e em plataforma de streaming, além de análises de séries, minisséries, animações e documentários, dando ao público uma pequena dimensão sobre a relevância de cada obra com foco em despertar o interesse pela arte e incentivando à cultura.

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