Am I blue?
Tenho saudade da época das cassetes, quando um dos meus maiores prazeres era gravá-las para os amigos. No processo de seleção das músicas, treinava instintivamente minha sensibilidade, experimentando contrastes e texturas. Se o lado A começava por exemplo com um duo de piano e voz, as músicas seguintes possivelmente seguiriam num clima mais intimista, correspondendo à proposta sugerida na canção de abertura. Em virtude dessa necessidade de “adequação climática”, cheguei a demorar meses para concluir um lado da fita, pois não encontrava a “música certa”. Minha ex professora de literatura, que acabou se tornado muito amiga, disse-me certa vez que minhas seleções eram adoradas pelo seu marido. Embora meu interesse jamais fosse seduzir maridos, acabei curtindo o barato da história. Guardo comigo uma cópia da terceira e última cassete que gravei (para o casal), modéstia parte meu melhor trabalho de edição.
Coloquei o título meio blasé de Am I blue?, inspirado na canção gravada por Billie Holliday. Abri o lado A com Chet Baker cantando Almost Blue, de Elvis Costello. Especialmente nesta canção Chet está sublime, intensamente in, com a voz calorosamente cool acentuando cada verso, sem desperdiçar nenhum colorido das notas. Não está tocando trompete, apenas canta acompanhado pelo piano e contrabaixo. Me apaixonei por Almost Blue assim que a ouvi pela primeira vez, o abandono e a esperança “quase azul”: “Almost blue/ Flirting with this disaster became me/It named me as the fool who only aimed to be”.
Escolhi para segunda faixa Tom Jobim interpretando sua Ângela: “Misteriosamente/Está tão diferente/Ângela/A face singular de Ângela, enquanto nos surpreende o amor”. Ângela está entre as mais belas e talvez menos conhecidas canções do maestro soberano: “Um compositor como eu escreve cerca de quatrocentas músicas na vida e fica famoso por uma ou duas delas”. Tom denso, exato e delicado com sua voz grave e seu piano econômico.
Em seguida entra João Gilberto, absoluto: “Estate sei calda como i baci che ho perduto/sei pena di un amore che è passato/che il cuore mio vorrebe cancellare”. Essa canção dos italianos Bruno Martino e Bruno Brighetti ganha o toque único de João. Só a lâmina de sua voz, acrescida pelos acordes precisos e a batida singular. Não tenho mais a referência do músico que toca com muita propriedade a vassourinha sofisticadamente cool (parece Robertinho Silva), que se casa com a dissonância da voz e da batida de João.
Quarta faixa, fixo meus olhos na fita que vai se enrolando em sua lentidão melancólica. Te acalma, minha loucura! Simplesmente a Doce presença (Ivan Lins e Vitor Martins) de Nana Caymmi e César Camargo: “Já tens meu corpo minha alma meus desejos/Se olhar pra ti estou olhando pra mim mesmo/Fim da procura/Tenho fé na loucura/De acreditar que sempre estás em mim”. Recordo-me que nesta época ouvia muito o disco Voz e suor, que marca o encontro entre Nana e César. César Camargo Mariano, ao lado de Dori Caymmi e Cristóvão Bastos, é um dos maiores arranjadores da música popular brasileira. Embora não aprecie muito a sonoridade meio “piano elétrico churrascaria” de algumas composições de Voz e Suor, os arranjos são bem elaborados e valorizam o timbre e a interpretação de Nana. A carga emocional presente na voz de Nana se funde com a gravidade do piano de César, que escande nota por nota, às vezes meio jobinianamente, como em Sede, de Moraes Moreira. César inicia a gravação marcando ritmicamente, enquanto Nana passeia pelas entranhas dos semitons. Nana é Caymmi e arrebatadora, sempre.
Nina Simone intensifica o clima in, cantando e tocando The other Woman, com sua interpretação absolutamente blue. É poderosa a voz áspera e rascante de Nina, acompanhada pelo trio cool composto por piano, baixo e bateria. Quando gravei essa fita meu desejo se inclinava para a criação de uma atmosferanoir, meio cult. Talvez eu quisesse transformar minha amiga (a professora) e seu marido no casal Jean Seberg e Jean Paul Belmondo em Acossado ou em Maria Schneider e Marlon Brando em O último Tango.
A propósito, sou fascinada pela trilha sonora de Gato Barbieri para o filme de Bertolluci, e minha vontade era colocá-la inteira no minúsculo espaço do lado B da fita. Na impossibilidade, elegi a versão famosa do filme. Na sequência entram Piazzolla e Gerry Mulligan tocando Twent years ago. Aumento mais o som para acompanhar a explosão “erótica” desses dois artistas incríveis. O bandoneon de Piazzola me aquece, e vai elevando a atmosfera até atingir seu ápice na bela interpretação de Ângela Rô Rô para Joana Francesa , de Chico Buarque: “Mata-me de rir/Fala-me de amor/Songes et mensonges/Sei de longe e sei de cor”. Ângela é uma excelente intérprete de Chico Buarque, vide Bárbara, De todas as maneiras e Vida. De Jeanne Morreau a tantas outras versões de Joana Francesa, tenho especial apreço pelo registro de Ângela. Me chama atenção sua compreensão do universo dramático de Chico, expressa na dinâmica de sua voz grave e calorosa e na pronúncia perfeita. Adoro Ângela.
A fita vai chegando ao fim, mas não exclui a figura sempre onipresente de Caetano Veloso. Aprecio seu pleno exercício de canção com gosto-corpo-gozo e sentido, A outra banda da terra dispensa palavras: “Amar/Dar tudo/Não ter medo/Tocar/Cantar/No mundo//Gozar a lida/Indefinidamente/Amar”.
Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.
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