Olhos de azeviche
“Desde que nasci/A voz da mulher/Me embala/Me alegra/Me faz chorar/Me arrepia os cabelos/Me faz dançar/Me cala ressentimentos/Me ensina a amar/Uma mulher cantando nas Antilhas/Uma voz de mulher nas rádios do Brasil/Minha mãe que cantava/Lembrança tão bonita/E as negras americanas/Dos hinos e dos blues/Amor, amor/Me leva essa voz/Nas asas das canções /Eu quero ouvir/Por toda a minha vida/Uma mulher cantando para mim”. Considero estes versos do letrista Abel Silva em parceria com a compositora Sueli Costa, uma das mais belas e singelas homenagens a força da voz feminina na canção. Penso em todas as grandes e pequenas vozes de mulheres, que no decorrer de minha existência me emocionam, me instigam, me ensinam, me transformam, me enriquecem, me iluminam.
Assim como um livro demanda às vezes tempo, para que possamos alcançar a maturidade devida para entendê-lo, penso que certas vozes solicitam um exercício de plena entrega e comunhão, para que nos tornemos capazes de adentrar em seu universo. Recordo-me de um episódio narrado por minha tia, que nos quinze anos de sua filha, resolveu levá-la para assistir Elis Regina, em seu derradeiro show Trem azul. Elis como um vulcão explodindo, nesse espetáculo explorava até o abismo e sem medo, todas as nuances e texturas de sua voz. Ousada, profunda, inquieta, irônica, afinada desde a mais tênue até a mais estrondosa emissão de uma nota, Elis mergulhava fundo nos versos de Gilberto Gil em Se eu quiser falar com Deus e depois entrelaçava seu corpo junto à platéia no bolero Me deixas louca, de Armando Manzanero. Não fui a este espetáculo, pois na época eu não passava de uma moleca de seis anos de idade. Minha prima no despontar da adolescência disse para minha tia “Mãe, a voz dela é um trombone, eu prefiro a voz de flautinha de Zizi Possi”.
Algo semelhante sucedeu comigo em audição solitária, quando me deparei com a estranha voz de Clementina de Jesus em duo com Milton Nascimento, interpretando Escravos de Jó, em Milagre dos peixes – ao vivo. Meus ouvidos não eram capazes de transcender o estado de perturbação ocasionada pela magnitude sonora, que me chegava por meio dos arranjos fabulosos criados por Wagner Tiso, Paulo Moura e Radamés Gnatalli, acrescido de músicos do naipe de Robertinho Silva, Toninho Horta, Nivaldo Ornelas e Luiz Alves. Como se não bastasse o elenco de músicos já consagrados, uma vasta orquestra de cordas e sopros chegava para transformar Milagre dos peixes num dos trabalhos mais belos e emblemáticos da carreira de Milton Nascimento.
Demandou tempo para que minha alma e audição amadurecessem e me conduzissem a Clementina de Jesus, com o vigor da curiosidade que me leva a amá-la e redescobri-la permanentemente em puro êxtase de aprendizado. Clementina, Quelé, Mãe Quelé, Rainha Ginga, estes e outros nomes são na verdade ínfimas tentativas de apreender a grandeza incomensurável que é Clementina de Jesus.
Descoberta aos sessenta e três anos pelo compositor, poeta e produtor musical carioca Hermínio Bello de Carvalho, Clementina abandona o canto anônimo que ecoou por décadas nos recônditos da cozinha e lavanderia, do espaço invisível de sua vida de empregada doméstica, para ganhar os palcos do Brasil e do exterior: “claramente regeneradora das poderosas raízes africanas de que era portadora. Esse africanismo jorrava caudaloso e inestancável nos terrenos onde o baticundum dos negros eram morcegos esvoaçando a insônia dos feitores de Casas Grandes que não podiam trancafiar as vozes das senzalas. A tardia decretação da alforria artística de Clementina recebeu a chancela de uma jurisdição cultural” (Hermínio Bello de Carvalho).
Quelé nasceu no município fluminense de Valença em 1901, numa casa construída por seu pai ao pé da capelinha de Santo Antônio do Carambita. Valença é marcada pela escravidão e expansão da cultura cafeeira no Vale do Paraíba, fazendo com que esta região tenha se tornado um dos pólos mais importantes da cultura afro-brasileira. Quelé pode ser compreendida como pertencente a linhagem dos negros Bantos, de acordo com o pesquisador e compositor Nei Lopes, o adjetivo “banto” designa cada um dos membros da grande família etnolinguística à qual faziam parte os escravos no Brasil denominados angolas, congos, benguelas, moçambiques, entre outros. Esses bantos foram os primeiros africanos trazidos como escravos.
Desde o berço, Clementina incorporou uma diversidade de traços afro-brasileiros. De sua mãe, a parteira e rezadeira Amélia Laura de Jesus Santos, Quelé herdou a força da ancestralidade africana. Certamente foi no convívio com a mãe que a Rainha Ginga aprendeu grande parte do repertório de lundus, cantos de trabalho e jongos, que vieram a consagrá-la como a mais pura representante em nosso país do legado africano.
O canto de Clementina é tão singular em seu timbre, emissão e divisão, que faz dessa mulher um ser único na trajetória da história do canto na música popular brasileira. Clementina não descende de nenhuma escola e nem é formadora de escola, visto que após sua partida não reconhecemos nenhuma cantora oriunda da “escola Clementina”, como ao contrário, é comum depararmo-nos com descendentes de Elis Regina, Nara Leão, Elizeth Cardoso, Maria Bethânia e outras damas da canção do século XX. O grave inigualável impresso no canto de Clementina de Jesus, advém das profundezas de seu âmago, que agrega uma vivência marcada pela coragem e luta permanente pelo existir, num mundo adverso a esta mulher pobre e negra.
Quelé ganhou no decorrer de sua vida de artista encontros de permuta musical e humana inigualáveis com Hermínio, Elton Medeiros, César Faria, Paulinho da Viola, Aracy Cortes, Cartola, Turíbio Santos, Albino Pinheiro, Clara Nunes, Sérgio Cabral e tantos mais, que jamais faço ideia. Contudo, por meio de minhas inesgotáveis audições, sinto que o músico que se aproximou mais visceralmente de Clementina foi João Bosco. Ouço-os cantando juntos Boca de Sapo e emociono-me com a plena compatibilidade entre essas duas grandezas geniais de nossa música. O timming expresso na divisão de Clementina, se afina na dose exata com a performance vocal de João. Arrisco dizer que João após ter conhecido Clementina, foi capaz de entender mais profundamente sua própria musicalidade. João clementinou-se numa sabedoria antropofágica. João sabe das coisas : “Eu acho que a Clementina nasceu há mais de dez mil anos. Ela nos liga aos nossos antepassados . Não se pode viver uma vida no Brasil sem saber da existência de Clementina.
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Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.
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