Entrevista com o musicólogo Paulo Motta
Daniela Aragão: Quando começou a música em sua vida?
Paulo Motta: A partir do momento em que comecei a estudar piano com minha irmã, aos sete anos de idade. Não há como não me lembrar disso. O piano ficava em nossa casa, minha irmã estudou em conservatório durante oito anos e possuía uma formação sólida. Vivíamos uma relação familiar, de troca musical que durou um ano e meio. Estudei com ela até os nove anos. O que era preciso, porém ficava louco para inventar moda, fazer as minhas coisas. Eu queria tocar sem seguir partitura. À medida que fui me desenvolvendo no estudo, passei a achar os ensinamentos de minha irmã repetitivos. Mais tarde, por volta dos dezesseis anos, entrei no Conservatório Nacional, que nem existe mais, mas não cheguei a me formar.
Daniela Aragão: Temos agora o Conservatório Estadual. E durante a estada no conservatório, você permaneceu desenvolvendo seus estudos individuais?
Paulo Motta: Com certeza. Neste tempo continuei estudando por conta própria, pois a técnica de piano não era problema. Achei muito bom poder estudar piano sozinho. Eu tinha o meu tempo. Em 79, 80, escolhi a música eletroacústica.
Daniela Aragão: Como se deu a descoberta da música eletroacústica?
Paulo Motta: Não se deu por método acadêmico, mas por meio da leitura de livros, de maneira autodidata. Por sinal, um livro de psicologia, referente à psicologia transpessoal, muito me estimulou. Na ocasião eu cursava o primeiro período de psicologia, no Ces. No livro, havia a representação de um quadro, em que apareciam vários pontos de centros energéticos no corpo humano. São sete pontos. No sexto, ou sétimo chacra, a música preponderante era a música eletrônica. Segundo o autor do livro, neste quadro ele cita a música eletrônica como representativa dos chacras mais sutis.
Daniela Aragão: Este quadro então foi impactante para você?
Paulo Motta: Com certeza. Imagina que isso se deu em 1979/1980. Não tinha como pesquisar direto, recorrer à internet (mesmo porque não existia Internet (rs)). Passei a pesquisar através de livros, em Juiz de Fora, especificamente, “Um guia da música eletrônica”, em inglês. A partir deste livro, passei a entender o que é música eletrônica. No entanto, a literatura sobre o assunto era escassa e, mesmo assim, com o passar dos anos, consegui mais alguns títulos, assim como algumas partituras
Daniela Aragão: Você poderia dar uma definição do que seria o termo “música eletrônica”?
Paulo Motta: A escola de Paris surgiu primeiro. Eles gravavam qualquer tipo de som e manipulavam aquilo eletronicamente. Sons de instrumentos, trem, porta rangendo, voz ... Eles gravavam esse e muitos outros sons e os transformavam eletronicamente. Eles chamavam esta técnica de música concreta; e quem a criou foi Pierre Schaefer com seus colaboradores. Já na Alemanha, a escola se opunha a esse tipo de perspectiva de composição. Eles não gravavam nenhum som externo, sintetizavam o som puramente eletrônico em aparelhos, e denominaram esta técnica de Elektronische Musik, ou música eletrônica. São duas fontes sonoras completamente diferentes. Isso define o uso do material para que se faça a distinção. A música de Paris era chamada de música concreta, pois eles gravavam a matéria sonora; e a música de Colônia, denominada eletrônica, tinha seus timbres sintetizados eletronicamnete. Os métodos composicionais também se diferenciavam: os franceses tinham uma perspectiva fenomenológica do som, com um método composicional derivado da concretude sonora; os alemães aplicavam o método serial às sonoridades puramente eletrônicas.
Daniela Aragão: De onde vem a caracterização inicial dos termos “música eletrônica” e “música concreta”?
Paulo Motta: O termo em alemão "Elektronische Musik" foi empregado, primeiramente, dando a entender, que o som era sinteticamente eletrônico, no início dos anos 1950. A música concreta foi em 48/49. Eram duas escolas com perspectivas diferentes. Na música concreta, a perspectiva era fenomenológica, como afirmei, e seus criadores não tinham método composicional específico, como os compositores de Bolonha
Daniela Aragão: O que singulariza a escola de Colônia?
Paulo Motta: Inicialmente, os compositores de Colônia adotaram o método serial, criavam quatro sequências com as doze notas do sistema temperado e criavam variações dessas notas em cada sequência. Ou seja, aplicavam um método de composição derivado do pentagrama, o serialismo, criado por Shoenberg. Mas os criadores da música eletrônica (na Alemanhã) se valeram da obra de um de seus discípulos, Weber, o qual praticava um serialismo mais radical. Isso tudo é para se dizer, que na música eletrônica da Alemanha, eles tinham um método de composição específico, oriundo de um método composicional antes aplicado aos instrumentos tradicionais. Eles aplicaram, inicialmente, esse método aos sons eletrônicos sintetizados. Com o passar dos anos, os compositores se tornaram menos restritivos e passaram a realizar suas composições, com métodos mais condizentes com a estrutura acústica dos sons eletrônicos.
Daniela Aragão: E a escola de Paris?
Paulo Motta: Os compositores de Paris, por outro lado, não aplicavam um método composicional específico. A perspectiva deles era fenomenológica. Lidavam com os sons em sua concretude.
Daniela Aragão: Além da parte eminentemente teórica, como se dava a procura dos sons para audição?
Paulo Motta: Comecei a procurar discos. Era muito difícil, pois eu não tinha nenhuma notícia de edição na época de LP nacional. Na verdade, não me lembro como fui me aproximando do material, só sei que consegui.
Daniela Aragão: Você realizou algumas mostras eletroacústicas em Juiz de Fora.
Paulo Motta: Sim. Como tratava-se de uma mostra e não de um encontro, tive autonomia para solicitar aos compositores os quais tive contato prévio, o envio de material de áudio, naquela época, em CDs A música eletroacústica tem uma de suas vertentes no suporte fixo. O sujeito/compositor sintetiza os sons, grava-os, não importando qual a origem dos sons a serem utilizados. Geralmente, eram concretos e eletrônicos juntos. Isso era feito não para ser escutado como em um disco com alguém interpretando um instŕumento tradicional A composição era feita, especificamente, para suporte físico. Não era como você entrar no estúdio e registrar a performance com instrumentos e voz e isso ser fidedigno, ao que você está tocando em tempo real. A música torna-se então uma categoria para ser pensada e escutada em suporte físico, sem intérprete ou a gestualidade aplicada aos instrumentos tradicionais
Daniela Aragão: A fixação no suporte físico dispensa a performance.
Paulo Motta: Quando você vai a um espetáculo de música popular ou erudita, você além de ouvir a música, vê a música, a performance. Não é como chegar em casa, colocar um LP ou CD e ouvir. Neste caso, escuta-se o registro de uma performance, que foi feito em estúdio ou em uma apresentação em tempo real. No suporte físico, você vai ao auditório, senta-se e, simplesmente, ouve. É uma experiência relativamente difícil, pois o ouvinte não tem a referência da gestualidade instrumental.
Daniela Aragão: Quantas mostras você realizou?
Paulo Motta: Organizei quatro mostras em Juiz de Fora, mas que não ocorreram com sistematicidade. Eu contava com o apoio logístico, eventualmente financeiro, de algumas instituições, como a UFJF, Funalfa e CCBM. Estas mostras, não envolviam gastos financeiros muito elevados, somente aparelhagem. Eu colocava a minha e eventualmente alugava alguma, ou a instituição.
Nas apresentações eu sempre incluía alguma execução minha, tinham alguns instrumentos que eu executava junto com a parte programada (música eletroacústica mista). Eram composições autorais. Nunca tive pretensão de chamar os compositores. Apresentei composições de músicos europeus, americanos, japoneses, latino-americanos, dentre outros
Daniela Aragão: Ocorreu intercâmbio de peças?
Paulo Motta: Com certeza. Alguns compositores americanos me enviavam peças. Era comum os compositores, que eram nascidos em um país, mas que residiam em outros. Havia argentino em Paris, por exemplo. Dois dos participantes vieram ministrar aulas na Universidade Federal de Juiz de Fora, Daniel Castellões e Daniel Quaranta. Este último, argentino. Encontrei-me com eles nos cursos de música.
Daniela Aragão: Você poderia falar sobre o seu processo de composição?
Paulo Motta: Fui desenvolvendo meu trabalho de composição, paralelamente, ao de escuta. Criei uma forma muito pessoal para meu método de composição. Consegui me satisfazer como compositor e tive um respaldo principalmente do Maestro Jorge Antunes. Cheguei a escrever uma resenha, a pedido dele, de uma de suas composições, e que foi editada em um periódico sobre música contemporânea.
Daniela Aragão: A música eletroacústica ainda parece restrita aos iniciados.
Paulo Motta: Por um lado sim, pois ela tem uma especificidade. Ela passa a incorporar um tipo de som que é comumente excluído da música tradicional. Uma assepsia que é legítima. Quando você parte do sistema não temperado para o temperado, você opera uma lapidação sonora para purificar o som. O Cravo Bem Temperado, de Bach, evidencia isso. No início do século XX se inicia a utilização do ruído, de sonoridade consideradas, naquela época, como não musicais, típicos da sociedade industrializada, com suas máquinas. Vai se legitimar no limiar do século XX, com a duas escolas, concreta e eletrônica. Depois, com a junção das duas, tem-se a música eletroacústica.
Daniela Aragão: Você também caminha na seara da música étnica.
Paulo Motta: De 2004 a 2006 passei a ler artigos sobre música étnica e música popular, muito em função do mestrado e especialização, que não foram estudos específicos na área de etnomusicologia, mas estudos etnomunicológicos sobre a estrutura rítmico-melódica de culturas musicais religiosas. Passei a conviver com estes dois campos (aparentemente) tão díspares, música eletrônica e música étnica. Uma é fruto da sociedade moderna, européia. Afirmo que é produto de uma tecnologia muito própria das sociedades ocidentais, da civilização. A música étnica é ligada às culturas originárias, e que estão sujeitas, em alguns casos (como a africana) a uma certa precariedade econômica.. São aparentemente distantes.
Daniela Aragão: E os seus discos autorais?
Paulo Motta: Na verdade são três discos e duas categorias. O primeiro e o terceiro são experiências, que fiz com instrumentos acústicos e digitais, trabalhados no computador. Procurei mostrar como eles se comportam num ambiente informático. Um meio termo entre registrar uma performance e entender como, num ambiente simulado de instrumentos acústicos, ambas as fontes sonoras podem ser trabalhadas com recursos informáticos. Trabalhei, sobretudo, com amostras sonoras digitalizadas. Muitos instrumentos que eu inseri nas gravações, inclusive, não toco mais. Por exemplo, utilizei amostras de percussão eletrônica procurando reproduzir timbres acústicos, o que foi um desafio. Minha proposta era pesquisar como os sons acústicos digitalizados se comportavam numa gravação, como as sonoridades instrumentais podem ser pensadas e trabalhadas em ambiente informático
Daniela Aragão: Fale sobre seu segundo disco
Paulo Motta: Sonorus Urbis. Ele é eletroacústico. Apliquei a técnica de composição eletroacústica para descrever histórica e sonoramente uma realidade sônica específica, que não por acaso foi em Juiz de Fora. A relação entre este trabalho e os outros dois, se estabelece na ambientação informática na qual foram trabalhados
Daniela Aragão: O que você acha de alguns trabalhos que retiram a base e mantém a voz. Foram realizados alguns com vozes de cantoras como Nina Simone e Billie Holiday.
Paulo Motta: A proposta é fantástica e legítima, vai depender de como foi feito. Pode ficar lamentável ou primoroso. Não tenho pudor com relação a isso. Sempre me lembro de John Cage. Ele era versátil em vários conhecimentos. Era por exemplo, especialista em cogumelos, um conhecedor do assunto. Costumava colher nos campos os cogumelos comestíveis. Cage falava o seguinte: para ingerir os cogumelos, preciso ter um conhecimento profundo sobre eles, pois posso morrer se ingerir numa espécie que for venenosa Já com os sons, ao contrário, posso ouvir qualquer um que não irei morrer de audição (risos). Posso ouvir qualquer som que não corro o risco de me envenenar.
Daniela Aragão: A fala de Cage serve para você.
Paulo Motta: Exatamente. Não vou me envenenar com algum som. Quando afirmo isso, não é que deslegitimo algum gênero musical. São campos sonoros que existem, a música popular, erudita, étnica, seja qual for.
Daniela Aragão: Não há preconceito musical em você, então?
Paulo Motta: Como pesquisador independente aprendi uma coisa: Não tenho pudor com relação aos gêneros musicais. Qualquer tipo de música é analisável, e pode ser considerada para tal fim. Não é questão de gosto. Possuo meu gosto musical, mas quando opero a escuta musicológica, não faço distinção. Não importa área ou gênero. Se você faz questão de um instrumento afinado e vai escutar um kotô japonês, você fica alucinado. Por isso Cage é importante neste contexto de pesquisa. Sempre abrir janelas, desempoeirar os ouvidos, desossificar a escuta.
Daniela Aragão: O que você gosta de ouvir?
Paulo Motta: Muita música eletroacústica, muita música étnica de várias origens, que considero riquíssimas. Música Popular Brasileira está atrelada a minha memória afetiva, quem negar que não tem alguma memória afetiva com música, penso que está mentindo para si mesmo. Mas são momentos sazonais. Muito do que ouvia há tempos, hoje não faz mais sentido em termos de memória afetiva e muito também se faz presente.
Daniela Aragão: Tem coisas que a gente ouve e se surpreende pela atemporalidade delas. O grupo formado por César Camargo Mariano, Luizão Maia, Elio Delmiro e Chico Batera, que acompanhava Elis Regina, é fantástico até hoje.
Paulo Motta: Certamente, uma formação que não vi mais. Antes de qualquer coisa, reouvir é uma questão existencial. A existência tem um dado de imprevisibilidade, A experiência que tenho no meu corpo e do ambiente, se altera, permanentemente. Uma frase de um provérbio Zen pode ser uma metáfora para esse tipo de percepção: “A montanha é um acontecimento”, aparentemente ela é sempre a mesma, mas ela se transforma, permanentemente, mesmo que não percebamos essas sutis transformações. Nossa vida é sempre inacabada, e quem acha ou tem a pretensão de que fez algo perfeito, no meu entender, já está morto, vive, mas não mais existe
Daniela Aragão: Há sempre a sensação do inacabado.
Paulo Motta: Toda obra é imperfeita e inacabada. Não consigo parar de pensar ou inventar uma forma de lidar com os sons. Há a música, os sons, os ruídos. Quando você os confronta, ocorre uma explosão e você chega à questão do inacabamento, da finitude. Tudo se transforma, permanentemente, e a obra é assim. A explicação para a ânsia de produzir é que você nunca é o mesmo quando começa um novo trabalho.
Daniela Aragão: Poderia dizer que você é um vasculhador incansável dos sons?
Paulo Motta: Procuro ouvir músicas que vão me tirar do lugar, não aquelas que vão atender as minhas expectativas. Quero me sentir incomodado. Quando falo das que conheço, quero reouvir e sentir o que elas me dizem hoje.
Daniela Aragão: O que é a música para a sua vida?
Paulo Motta: Trabalho, dedicação, pesquisa... Trabalho, envolvimento, disciplina pessoal... Trabalho, movimento, compromisso... Trabalho, deleite e satisfação. Não sou muito afeito à glamourização comumente associada à música e ao fazer artístico em geral. Como compositor, considero a atividade no campo da música como um ofício que dignifica os sons, sejam eles considerados musicais ou não. A Música que crio e produzo envolve uma atividade permanente com os mais variados campos sonoros, e significa trabalhar esses campos - com o material musical - a partir de minhas experiências pessoais, existenciais. Viver "para" a música e viver "de" música significa, portanto, um comprometimento com minhas próprias experiências de vida, o que inclui a convivência com outros músicos, assim como a aproximação e comunhão com suas próprias experiências com a música. Música significa, para mim, uma atividade na qual sons de qualquer origem e procedência (transformados na música em sonoridades) incorporam a continuidade transitória e inacabada dessas experiências musicais e existenciais. Isto pode parecer um tanto quanto distanciado de um mundo dominado pelo descartável, pelo mercantilismo e pelo poder econômico, mas, pessoalmente, é o que me ampara musicalmente.
Neste contexto, a música que componho é criada para dignificar os próprios sons (e não somente aqueles emitidos pelos instrumentos musicais e pelos sintetizadores eletrônicos) como resistência a esse contexto; mas, simultaneamente, como um fator de aproximação e de compreensão do mundo e da realidade social na qual vivemos. Pode ser uma tarefa, demasiadamente, ingrata para uma atividade artística que emprega uma matéria tão fugaz e transitória, como os sons. Mas eles, os sons, incorporam aquilo que talvez mais se aproxime de nossa condição humana, existencial; ou seja, transitoriedade e finitude. Eles, os sons, como nós, "existem" no tempo e no espaço, têm duração definida e, em certo sentido, sempre se apresentam inacabados e podem ser transformados, constantemente. Os sons e os silêncios da música são invisíveis como o são nossos pensamentos, mas pensamentos acontecem em nossos corpos; que, por sua vez, vivem e se movimentam sobre a superfície da terra. Música, enfim, é o recurso artístico que temos para experimentar, compreensivamente, as mudanças, o inacabamento e a transitoriedade de nossas próprias existências; assim como o fato (via de regra, imperceptível) de que vivemos, existimos e morremos em uma imensa e sempre inacabada partitura
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