Filé com Fritas
Uma semana sem ir ao centro da cidade, e eis que me sinto na pegadinha do Silvio Santos em que o transeunte entra no banheiro químico de uma rua pacata e quando sai dá de cara com o Darth Vader numa galáxia cujo som ambiente, pelo menos para o telespectador, é a risada antológica e altamente contagiosa do senhor Abravanel. É que a vocação do comércio muda o tempo todo: você sai para fazer um TED na agência 0000 do Santander, e o imóvel que a hospedava até anteontem agora sedia a Casa de Bolo da Tia Irene, com um palhaço na porta anunciando as promoções do dia e advertindo no alto-falante o pedestre que saiu de casa com o zíper da calça aberto.
Se no passado, sob a contagem de criança, embarcar para o calçadão tinha a grandeza de uma viagem para a Tailândia, hoje o percurso dura dois WhatsApps, sendo que cada um vira língua em extinção com 30 segundos de vida – salvo os zaps da mãezinha, que têm a longevidade do Faroeste Caboclo.
Mas o fenômeno maternal-tecnológico não deixa de ser uma reverência aos turnos legítimos da vida. Eles que dão conta da produção em série dos elefantes na Uganda. Da seiva que mantém os corpos da guarda real sempre em riste. Das pausas na fala do negociante chinês mais aflito. Da criança decodificando pela primeira vez os códigos secretos do cítrico. Da demolição dos dentes, sem alvará sem nada, pelos biscoitos recheados, gorduras trans e pirulitos.
Aproveitando a passagem rápida pela gôndola dos alimentícios, lembrei que hoje é dia de filé com fritas. E, antes de olhar o próximo item da lista, sou transferida para o nono andar da imaginação, em que há uma cozinha com mobília futurista e reina uma chef proclamando aos comensais imaginários: “se o paladar abrisse licitação para a felicidade, na certa, a sociedade gastronômica, o case de sucesso filé com fritas venceria sumariamente.”
Gravitando em torno dessa iguaria, um executivo, alta cúpula, deixa, por um momento, de fazer as vezes do CNPJ e põe para tocar a faixa inteira da própria risada, antes repreendida. Ao redor do filé com fritas, um frei trai a dieta prescrita pelas escrituras sagradas e, por meio do palato, comete seu único pecado. Às margens dessa porção, que vem sem classificação etária, Sophia, 8 anos, socializa com Eustáquio, de 95.
Outra prerrogativa do filé com fritas é a de nos abduzir para um lugar ultrapalatável, colonizado pelas nossas memórias afetivas – elas que nunca branqueiam os cabelos nem perdem os dentes e conseguem se manter na marcha de um Fiat 147 mesmo em tempos capitaneados pela aflição das franquias, pelas siglas, pelo vocabulário mutilado da geração Z, pelas festinhas que, no intervalo de um curta-metragem, ressoam o toque de recolher e pelos docinhos devorados pelos convivas (cujos vestidos mais parecem grutas – de tanta pedraria – com fauna notívaga) sem o aval dos parabéns.
Antes que a vida dê seu próximo looping e me remexa feito bexiga de aniversário que subitamente perde o ar, peço uma porção de filé com fritas. Porque, sob o efeito metafísico do sabor, sou fretada para minhas cavernas, onde é proibida a entrada de telões de LED que magoam as vistas, de mães xingando os filhos nos restaurantes com o volume UCI Kinoplex e de lojinhas comercializando sem parar produtos sem a mínima serventia. Interagindo com o filé com fritas, reduzo o mundo à perspectiva de maquete e sou promovida momentaneamente a capitã da minha própria vida. Sem interferência do Darth Vader, do Homem Aranha, do Fred Flintstone, da Hello Kitty, do Nhonho, do Walter Mercado.
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