Ivan Bilheiro Ivan Bilheiro 23/12/2014

 


Cogitações...

Serendipididade!

HolmesSerendipididade é uma palavra bastante estranha. Eu poderia apostar que a maioria das pessoas que agora lêem esse texto nunca ouviram falar, nem sequer leram sobre isso em algum lugar. Logo, não sabem o significado. Mas, veja: isso não é demérito algum. Ninguém é obrigado a saber o que é serendipididade.

Antes de explicar o que essa palavra significa, permita-me contar onde a encontrei: foi lendo o livro A cabeça bem-feita do filósofo francês Edgar Morin. Não foi ele quem inventou a estranha palavra, mas ele a utilizou como característica de pessoas parecidas com... Sherlock Holmes! Há quem diga que o detetive inglês é simplesmente um personagem dos livros de Sir Arthur Conan Doyle e que, se serendipididade é uma característica dele, então são duas coisas fictícias, inventadas. Mas, pensando bem, o contrário disso é que é verdadeiro: um personagem de livro (diz Jacques Bonnet em Bibliotecas cheias de fantasmas) muitas vezes é mais conhecido que seu autor, e suas características são mais claras que as de quem escreve. É fácil notar: muitos conhecem muito bem o detetive Sherlock Holmes. Poucos conhecem Sir Doyle, seu autor. Toda essa volta serve para dizer: é bem provável que você saiba o que é serendipididade, se já ouviu falar de Sherlock Holmes. Qual é a principal característica deste famoso detetive? Elementar, meu caro: sua capacidade de solucionar os casos em que se envolve. Mas, como? Que ferramenta ele usa? Volto ao livro onde descobri a palavra para buscar seu significado: a serendipididade é a "arte de transformar detalhes, aparentemente insignificantes, em indícios que permitam reconstituir toda uma história". Esta é a ferramenta de Sherlock Holmes: a observação do que é essencial – enxergar "pontes" onde todos vêem "lacunas". Estar atento, deixar-se envolver pelas incertezas do problema com o qual está lidando para encontrar, a partir delas, a solução.

Outro personagem bastante conhecido, provavelmente mais que seu autor, é o Pequeno Príncipe, clássico escrito por Antoine de Saint-Exupéry. Na história desse personagem, o autor conta um caso interessante sobre as "pessoas grandes": "As pessoas grandes adoram os números. Quando a gente lhes fala de um novo amigo, elas jamais se informam do essencial. Não perguntam nunca: 'Qual é o som da sua voz? Quais os brinquedos que ele prefere? Será que ele coleciona borboletas?'. Mas perguntam: 'Qual é a sua idade? Quantos irmãos ele tem? Quanto pesa? Quanto ganha o seu pai?'. Somente então é que elas julgam conhecê-lo. Se dizemos às pessoas grandes: 'Vi uma bela casa de tijolos cor-de-rosa, gerânios na janela, pombas no telhado...', elas não conseguem, de jeito nenhum, fazer uma ideia da casa. É preciso dizer-lhes: 'Vi uma casa de seiscentos contos'. Então elas exclamam: 'Que beleza!'."

Foi a mensagem tirada do Pequeno Príncipe que me fez pensar na serendipididade: as "pessoas grandes" esfriam o que há de maravilhoso no mundo porque deixam de ver o essencial. Querem classificar, julgar, avaliar, calcular... Assim, perdem a capacidade da admiração. Não querem conhecer o que há de especial nas coisas ou nas pessoas. Querem, muitas vezes, colocá-las em tabelas. Por isso, penso que, se há algo inovador para se desejar neste final de ano, como um voto para o próximo (para fugir um pouco daquelas mensagens automáticas: "Feliz Natal e próspero ano novo"), esta mensagem pode ser: que sua vivência seja repleta de serendipididade. Retomar a capacidade de maravilhar-se ante as coisas do mundo, não da forma técnica que fazem as "pessoas grandes", mas com a inocência dos pequenos. Sherlock Holmes usava a serendipididade porque via além do que as pessoas comuns viam. Não ficou cego para os detalhes. Afinal de contas, disse a raposa ao Pequeno Príncipe: "Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos".

Feliz 2015. Muita serendipididade!


Ivan Bilheiro é professor de Filosofia e Sociologia. Licenciado em História pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF), bacharel e licenciado em Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), instituição na qual cursa o Mestrado em Ciência da Religião. É, também, especialista em Filosofia pela Universidade Gama Filho (UGF) e em Ciência da Religião pela UFJF.

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