É meu!
"É meu!"
Quando cheguei àquela fazenda nas paragens de São Domingos, lá pelos lados de Santa Margarida, num ponto em que se confundem a Zona da Mata e o Leste mineiro, assoberbado que estava com meus afazeres de adulto, dei pouca atenção à pequena disputa entre os meninos. Rotos, de pés no chão, cara suja de terra, como tem que ser uma boa infância, suja e poeirenta, estavam acalorados em uma discussão.
"É meu".
"Não! O seu é aquele dali."
"Não, esse aí foi o que chegou ontem! O meu é aquele de lá, que já está aqui há mais tempo!"
O mais velho, aproveitando do seu tamanho e porte físico levemente mais avantajado, coisa de um ano de diferença, aproveitava para impor respeito ao menor, em desvantagem. Este, por sua vez, não se acuava perante às investidas do mais forte, que tentava se dar bem no darwinismo retórico que travavam, por ora, já que a ameaça do uso de força física parecia uma questão de tempo, entre os dois.
"Aquele que chegou primeiro é o meu. Ou vai querer tomar uns cascudos de novo?"
O menor era valente e retrucou, ao que o mais velho lhe aplicou uma gravata. O pequeno tentou se esquivar e grunhia alguma coisa ininteligível, em torno da defesa de sua suposta propriedade. Como todo baixinho, era invocado, como dizia a minha Dinda, no sul de Minas.
"Parem com esse agarra-agarra", ralhei, tentando apartar o minitumulto, porém, um tanto mais curioso para saber qual era o cerne da quizila ali instalada. Confesso que aquilo tomou minha atenção por completo, caindo por terra o que dissera no início, sobre o emaranhado de serviços da vida de homem feito.
"Que tanto vocês disputam, afinal?"
Bastou dar um dedo de prosa para a molecada e eles já se tornaram íntimos. O mais novo, que quase fora esganado há uns 30 segundos, apontava, indicadorzinho em riste, para as máquinas espalhadas no morro na parte de cima da casa. Eram as escavadeiras, as retroescavadeiras, as motoniveladoras e os caminhões basculantes que fascinavam os garotos. Crianças acostumadas com os carros de bois, carroças e velhas caminhonetas, certamente, ficaram deslumbradas com o vulto do maquinário ali estacionado.
"Tá vendo, aqueles dois tratores amarelos lá em cima, moço? Quando aquele debaixo chegou, eu disse primeiro que ele era meu! Agora, ele tá querendo tomar de mim..."
"É mentira dele! Você é muito mentiroso! Não acredita nele, não!"
E sem querer me tornei juiz na questão dos tratores. Tentei entender um pouco melhor a situação, em que havia sido, acidentalmente, envolvido.
"Como assim, vocês são donos dos tratores?"
Eles tinham todas as explicações.
"Quando o trator da companhia chegou, eu falei que era meu e agora, ele quer tomar de mim!", inflamou o pequeno, que quando gritava, estufava as veias do pescoço, parecendo querer explodir, tamanha a veemência com que se defendia.
Sem saber o que dizer, procurei ganhar tempo para render discussão. Para tanto, limitei-me a repetir o que o menino havia dito, para ver se complementavam com mais informações.
"Então, você falou primeiro que era dono..."
O mais velho mordeu a isca e não deixou barato. Apresentou as suas armas naquela discussão.
"Mas eu também vi aquela primeira chegar e foi antes dele!"
O pequeno tentou um xeque-mate.
"Você pode até ter visto, mas quem falou primeiro, fui eu!"
O mais velho jogou o menor no chão. Tive que separar, novamente, a confusão.
"Temos que resolver essa situação e não vai ser desse jeito." Emaranhado pelo lirismo da contenda, eu já quase tomava partido. O mais velho me irritava, com sua vantagem física. O menor, por sua vez, ganhava minha admiração, com sua ousadia ou, quem sabe, por razões subjetivas. Também fui caçula e sempre levei prejuízo nas confusões familiares da infância. E já não me importava o documento do trator que, certamente, deveria estar lá no interior da máquina. Naquele momento, o trator não era da empresa, sob nenhum aspecto. Ou era do mais velho, ou do mais novo.
Embora o menor tivesse a minha preferência, achei que seria mais justa uma solução consensual. Os dois precisavam chegar no acordo que fosse bom para ambos.
"Temos dois tratores ali no morro. Porque nenhum de vocês quer o segundo?"
"Porque o primeiro é melhor!", sentenciou o mais velho, com a anuência do mais novo.
Do alto da minha miopia, olhei para o morro e não vi diferenças que justificassem a primazia do primeiro trator.
"Como sabem que o primeiro é melhor?"
Veio a óbvia resposta.
"Porque é melhor!", disseram os dois, quase em coro.
A disputa parecia insolúvel. O trator que chegou primeiro à fazenda era melhor do que o que chegou depois. Embora ninguém seja insubstituível, o segundo sempre carrega o fardo de ter que provar que é tão melhor do que aquele substituído. É assim com o juízo do mundo, é assim com o das crianças. Vale para ídolos do seu time de futebol, para presidentes da república e tratores amarelos. Encontram severas dificuldades para provar que são melhores que o antecessor.
Procurei lançar mão de outra alternativa.
"Não serve nenhum daqueles caminhões lá de cima?"
"Aqueles já estão por lá há muito tempo. Perderam a graça...", responderam.
Foi, então, que tive uma ideia para resolver a pendenga dos dois meninos, donos dos tratores.
"E se dividíssemos os dias? – Você fica com a segunda, a quarta e a sexta e você, terça, quinta e sábado."
Os dois ficaram pensando. A solução parecia bastante viável para recusarem, mas o menor era muito esperto.
"Mas e o domingo?"
"É, como é que fica domingo?"
Sentindo o instinto belicista dos moleques, que queriam utilizar de qualquer pretexto para continuarem em disputa, cheguei até a pensar em propor, "no domingo vocês saem no braço e resolvem quem fica com o melhor trator". Acabei sendo ético e racional, no entanto.
"No domingo, o trator descansa. Até Deus, que fez o mundo em seis dias, usou o último dia para descansar. E vocês dois não vão fazer diferente, certo?!"
Graças ao próprio Deus, aquela criançada ainda tinha medo das coisas do alto e aproveitando desta credulidade, a situação foi parcialmente resolvida. Parcialmente, porque, não duvido, ainda brigariam para definir quem ficaria com a segunda, a quarta e a sexta. Ou com a terça, a quinta e o sábado. Bastava um dos dois se manifestarem em favor de uma coisa ou outra.
Puxando da memória, compreendi o que se passava na minha infância, das brigas com os irmãos, os primos... Brigávamos sempre pelo que queríamos e, geralmente, queríamos a mesma coisa. Ou melhor, elegíamos algo para querer igual. Pelo simples prazer da disputa, que só valia a pena se o alvo eleito tivesse o mesmo significado para todos. Se não, não haveria a menor graça.
Resolvida a confusão, era momento de retomar os afazeres de adulto e cumprir os deveres profissionais que me levaram até àquela paragem. Coisa rápida, simples demais perante à disputa que acabara de presenciar, ainda no pátio de entrada da sede. Quando voltava em direção ao carro, percebi que os dois já estavam engalfinhados mais uma vez.
"Essa é minha, nem vem que não tem!"
"Fala que é minha, porque se não eu vou acabar com a sua raça, seu bandido!"
É que enquanto ainda fazia o atendimento, outra caminhonete de um companheiro de trabalho estacionou no local. Tínhamos algumas pendências para resolver e ele acabou me aguardando. Isto é, novamente, tínhamos dois objetos em disputa.
"Esses moleques estão brigando porque disseram que a sua caminhonete é deles."
"Você ainda não viu nada", limitei-me a dizer.
Fiquei lisonjeado em saber que preferiram a minha caminhonete. Sabia que a desejavam por completo e que se digladiariam por horas, em torno daquele interesse comum.
Desta vez, não separei a briga e nem funcionei como juiz. Fechei a porta do veículo e me mandei. Da janela da caminhonete, misturado com o ronco do motor, ainda dava para ouvir os dois coros.
"Aquela caminhonete é minha!"
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Juliano Nery é jornalista, professor universitário e escritor. Graduado em Comunicação Social e Mestre na linha de pesquisa Sujeitos Sociais, é orgulhoso por ser pai do Gabriel e costuma colocar amor em tudo o que faz.
* Ilustração: Lucí Sallum
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