Juliano Nery Juliano Nery 7/2/2013

Memória fotográfica

IlustraçãoEle me chamava de senhor e embora eu não gostasse do epíteto, deixei rolar. Ele era um camarada especial. "Quando o senhor passar pela terceira goiabeira e olhar para o açude, vai ver que os passarinhos gostam de ficar naquela grama tomando sol", recomendou, com uma precisão milimétrica, conferida por mim, após findarmos aquela conversa. "Aquela erosão da faixa da companhia, no pé do morro, acontece sempre nos meses de chuva. Por essa época deve estar enorme..." E realmente estava. Cada buracão de todo tamanho. Ele estava coberto de razão. E para quem pensa que ele olhou tudo aquilo com uma visão apurada, detalhista e observadora, ledo engano: aquele homem de mais de 90 anos, ele, sim, um senhor, possuía "as vistas" completamente comprometidas pela catarata. Ele não enxergava com os olhos, mas possuía visão de raio-x.

Na simpática casa de zona rural perto de Água Espraiada, no município de Santos Dumont, o senhor não contava com qualquer problema para se localizar. "Ele sabe mais das coisas aqui dentro de casa do que eu, que enxergo com os dois olhos", orgulhou-se a esposa, durante a minha visita. Ele ouviu e, cheio de si, solicitou à companheira há mais de 60 anos. "Pegue o nosso álbum de retratos." E me perguntava, a cada barulho de virada de página. "O que você está vendo agora?", tecendo comentários sobre as lembranças decoradas sobre as fotografias amareladas, de um tempo longínquo, mas vivo na memória. "Minha única tristeza é ter visto tanta coisa e não poder ver o que está aqui e agora na minha frente. Mas, paciência, até que eu já vi demais!", consolou-se, recobrando o bom humor.

O interessante é que as suas memórias eram sempre decoradas por cores vivas, o que acabei externalizando a ele. "A vida sempre foi muito colorida para mim. Isso deve se refletir nas minhas lembranças, senhor." Ficamos conversando por pouco mais de uma hora. Entre cores, causos, reminiscências, notas de família e pouco, muito pouco, do que havia ido fazer, que era entregar uma correspondência de trabalho. Indagado se a sua esposa poderia assinar, o simpático senhor fez questão de demonstrar sua objeção. "Não, senhor! Coloque a caneta na minha mão, que eu mesmo assino." E desenhou, com letra rebuscada e sem tremer, o seu nome. "Escrevi muito no caderno de caligrafia, senhor."

Ao sair para visitar outros moradores da região, com um calhamaço de correspondências nas mãos, perguntei ao ilustre senhor, homem de visão, sem dúvida alguma, se ele conhecia o próximo vizinho a me receber e onde poderia encontrá-lo, usou das suas principais qualidades, a precisão. "Você chegará na avenida principal da cidade e, em frente ao tiro de guerra, existe um supermercado com a fachada pintada em vermelho. Você andará por cinco metros e na pequena porta de aço, você pergunta por ele." Fiz questão de anotar aquela rota de GPS em um papel, só para confirmar. Com sorriso no rosto, concluí que aquele homem de alta idade possuía uma memória fotográfica e das melhores que já vi.

Juliano Nery acredita que Minas Gerais é mais que um Estado. É um estado de espírito. Santos Dumont pode ser encontrada na latitude 21° 27' 25" S e longitude 43° 33' 10" O


Juliano Nery é jornalista, professor universitário e escritor. Graduado em Comunicação Social e Mestre na linha de pesquisa Sujeitos Sociais, é orgulhoso por ser pai do Gabriel e costuma colocar amor em tudo o que faz.


* Ilustração: Lucí Sallum

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