Diversidade
Já a médica e pesquisadora Monique França foi beneficiária do sistema de cotas em 2010, quando entrou na graduação na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), instituição pioneira na reserva de vagas, 12 anos antes da aprovação da Lei de Cotas. Era também uma época de muito preconceito contra os cotistas e até a mãe de Monique acreditava que a reserva de vagas era uma forma menos válida de acesso à universidade.
De forma explícita, Monique diz que a educação "mudou sua vida", mas nas suas palavras também é possível perceber como a presença de mulheres como ela pode mudar a educação e a pesquisa no Brasil.
"Você entrar na universidade, tendo alguma consciência ou a possibilidade de moldar a sua consciência racial e social, você pode cobrar mudanças de estrutura, de currículo, de abordagem. Falar de doenças que são negligenciadas, falar que o racismo pode adoecer", defende Monique.
Atualmente, ela faz doutorado em Saúde Pública na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), onde pesquisa a saúde da população negra. Ela acredita que a presença de mulheres negras nesses espaços ajuda a apontar lacunas que acabaram sendo normalizadas.
"Eu faço parte de um grupo de médicas negras pesquisadoras, e a gente está sempre ali no muro das lamentações, ‘o artigo foi recusado e a justificativa é que não tem relevância, que não tem nexo causal’ e etc. E aí no doutorado, o professor estava falando sobre os principais motivos de recusa de artigos e eu falei ‘o racismo deveria entrar no seu slide como motivo de recusa’. Porque você tem que se adequar e escolher um padrão que muitas vezes não abarca pessoas negras ou uma escrita negra, no conteúdo que se deseja publicar e estudar".
A médica e pesquisadora também bateu de frente com uma das grandes barreiras impostas a mulheres pesquisadoras. Ela teve sua primeira filha dias antes de começar o mestrado, e engravidou da segunda logo depois de se qualificar. Com a ajuda de uma boa rede de apoio, conseguiu concluir os estudos dentro do prazo. Monique rechaça a ideia de que a maternidade "atrasa" a carreira das mulheres pesquisadoras, e diz que o problema está no preconceito contra mães na academia e na falta de apoio institucional.
"Me perguntaram na entrevista como eu faria o mestrado se eu estava grávida. E acho que ninguém pergunta para os homens se as companheiras deles estão grávidas numa entrevista de mestrado, né? É muito injusto pensar que você ter uma criança te coloca num lugar de diminuição da capacidade intelectual. Muito pelo contrário, você tem que ter muita intelectualidade para criar uma criança de forma respeitosa", afirma.
"Como você quer uma resolução de problemas de modo criativo se você só tem o mesmo perfil de pessoas debatendo? Então, mulheres, mães e pessoas negras são pessoas que podem ter uma potencialidade de diversidade para esse cenário de estudo, pesquisa e trabalho que se faz necessária para solucionar muitos problemas que a gente ainda tem no nosso país e no mundo", defende.
A pesquisadora do Gemaa Márcia Cândido faz coro com Monique. "Diversas pesquisas no Brasil e também internacionais têm mostrado que quando você coloca diferentes experiências e perspectivas de vida convivendo num espaço social, você dá condições para que novas ideias surjam. Comprovadamente mostram essa eficiência da diversidade para trazer maior riqueza do ponto de vista intelectual e do ponto de vista de inovação de pesquisa científica, o que traz progresso para todo mundo."
Concursos
Mas ainda é preciso vencer o gargalo da docência. "Como a gente tem a universidade pública muito vinculada à produção científica, acaba que esses homens brancos também estão dominando a produção científica feita no Brasil hoje", argumenta a pesquisadora.
Os concursos para docentes nas universidades públicas federais também estão sujeitos à lei das cotas no serviço público e precisam reservar 20% das vagas para pessoas negras. Mas, muitas vezes, as vagas são oferecidas de forma fracionada, por departamento, áreas de conhecimento ou localidade, o que impede a aplicação da lei, já que é preciso ao menos três vagas para que uma seja reservada.
Um estudo feito no ano passado pela Universidade Federal do Vale do São Francisco e pelo Insper calculou que cerca de 10 mil pessoas negras poderiam ter sido contratadas como professores efetivos ou temporários, de junho de 2014, quando a lei entrou em vigor, até dezembro de 2022, se não fosse por esse fracionamento.
No ano passado, o Congresso Nacional aprovou uma atualização da lei de cotas no serviço público, que aumenta a reserva de vagas para 30%, inclui indígenas e quilombolas e diminui para dois o mínimo exigido para aplicação da cota. O projeto está em tramitação no Senado, que vai avaliar mudanças feitas durante a votação na Câmara e depois segue para sanção presidencial.
Enquanto isso, a professora da Ufes Márcia Pereira diz que os docentes têm discutido mudanças, como a publicação de editais únicos, para seleção de professores de diversas áreas do conhecimento, o que aumentaria a quantidade total de vagas e permitiria a aplicação da lei. Outra possibilidade levantada pela pesquisadora do Gemaa Márcia Cândido é que os departamentos façam seleções direcionadas, com vagas exclusivas para públicos específicos.
Tags:
Ciência | ensino científico | mulheres cientístas | Mulheres Negra | ONU
Entre na comunidade de notícias clicando
aqui no Portal Acessa.com e saiba de tudo que acontece na Cidade, Região, Brasil e Mundo!