Agência Brasil: Não havia disco nem rádio no início do choro. Foi pelas rodas que a música se perpetuou até haver um meio de comunicação que a levasse a um público maior?
Henrique Cazes: Foi pelas rodas de choro e também pelas partituras. Uma parte do contingente dos chorões, desde o início, era de leitores de música que faziam as anotações. Um músico copiava do caderno do outro, e esses cadernos se multiplicaram e foram importantes na fixação do repertório do Século 19. Depois de um certo ponto, em torno do ano de 1900, começam a imprimir partituras em quantidade maior.
Já na era do rádio, os conjuntos tocavam choro [no ar, ao vivo]. Os grandes solistas que lideravam esses conjuntos, chamados regionais, foram figuras importantes. Eram solistas tão conhecidos quanto os cantores mais famosos. O conjunto do Jacob do Bandolim, o conjunto do Benedito Lacerda, o conjunto do Altamiro Carrilho. Eles eram atrações também na programação do rádio.
A era do rádio foi uma coisa muito importante, mas eu acho que as rodas de choro selecionaram o acervo musical. Uma parcela do repertório foi mudando de acordo com o núcleo de chorões [que tocavam nas rodas de choro] e reafirmava pertencimento em razão do amor pela música. As rodas também são uma maneira dos amadores encontrarem os profissionais.
Agência Brasil: No livro O choro reinventa a roda, você chama de Fase Defensiva do Choro um período que vai de 1932 a 1980. Nesses quase 50 anos iniciados com a era do rádio, tivemos nomes como Pixinguinha, Garoto, Jacob do Bandolim, Benedito Lacerda, Altamiro Carrilho, Abel Ferreira, Zé Menezes, Valdir Azevedo, Zé da Velha e outros tantos citados. Com elenco desses, o melhor nome que a gente poderia chamar é de fase defensiva?
Henrique Cazes: Na verdade, o que aconteceu, coincidentemente com a era do rádio, foi um distanciamento dos profissionais do ambiente da roda. Ou seja, um distanciamento entre profissionais e amadores. E isso fez com que os amadores fechassem o ambiente do choro. Daí é esse nome de “fase defensiva”, porque a roda de choro ganha um caráter meio iniciático, uma coisa quase maçônica. É um momento difícil, em que, praticamente, a transmissão se dá por meio dos discos, dos quais os músicos amadores conseguiam tirar o repertório. As rodas eram muito fechadas. Dois musicólogos norte-americanos, Tamara Livington-Isenhour e Thomas Garcia, nomearam essa fase como “defensiva”, e eu aproveitei ao constatar na descrição de vários chorões o temor que havia de que as rodas se abrissem e se desvirtuasse. Uma visão muito conservadora.
Agência Brasil: Nesses tempos fechados, as rodas de choro se esconderam nos quintais do subúrbio do Rio de Janeiro? O que a cidade tem a ver com esse momento do choro?
Henrique Cazes: Em depoimento ao Museu da Imagem e do Som, Jacob do Bandolim disse que as rodas de choro estavam rareando porque não se admitia uma roda sem um quintal, sem uma varanda. E havia uma transformação urbana, com o desaparecimento do modo de viver da casa, com espaço, dando lugar a prédios de apartamento, ainda nos anos 1950 e 60. Em um apartamento é muito complicado fazer alguma coisa desse tipo.
Agência Brasil: Os baianos, como os cariocas, reivindicam a paternidade do samba. Mas sobre o choro não há querela, é uma música genuinamente carioca. Por que o choro nasceu no Rio?
Henrique Cazes: A experiência que levou ao aparecimento do choro só poderia ter acontecido em uma cidade que, no Século 19, em 1808, recebe a corte portuguesa. Uma cidade que tinha população negra muito grande, não só pessoas escravizadas, e onde houve encontro com a cultura de origem europeia. O mundo acadêmico não era longe desse mundo da música popular. Tudo isso fez com que o choro tivesse características tão peculiares. A certidão de nascimento carioca é inquestionável porque, naquele momento, a única cidade que tinha essa mistura específica [era o Rio], inclusive com a quantidade de músicos e professores de música trazidos pela corte.
O professor belga Métier André Hacker foi professor do Joaquim Callado. Eles se tornam grandes amigos e acabaram compondo dentro das formas do choro: do lundu e da polca abrasileirada. Havia uma interação de fato com os olhos na Europa e os pés no chão dos terreiros.
Agência Brasil: Nesse chão dos terreiros, também vai ter samba... Você percebe dinâmicas diferentes entre as rodas de choro e as rodas de samba?
Henrique Cazes: A principal diferença é o elemento corpo. A roda de choro é um ritual construído por sons e olhares. Na roda de samba, o corpo é o dono do samba, e o samba é o dono do corpo. Aliás o [sociólogo e jornalista] Muniz Sodré já escreveu um livro com esse título. Essa parte que envolve sensualidade, tão marcante da roda de samba, é ausente na roda de choro.
É algo muito sutil e é justamente o mistério da roda de choro, com características que parecem tão pouco atrativas principalmente às pessoas mais jovens, conseguir existir há 150 anos. E está aí firme e forte, toda hora aparece uma roda de choro nova. Isso é fascinante, né?
Agência Brasil: Choro e samba não têm em comum os conjuntos chamados de “regionais”?
Henrique Cazes: Não, [o regional] é do samba. A profissionalização do rádio se deu ao mesmo tempo em que houve a consagração do chamado samba batucado. Quer dizer, o samba maxixado dá lugar ao samba batucado. O [maestro e compositor] Benedito Lacerda é o primeiro a aperfeiçoar um conjunto que era ideal para o acompanhamento do samba batucado. Tanto é que na discografia da Carmen Miranda dos anos 1930, os sambas são acompanhados pelo regional do Benedito Lacerda, e as marchas, acompanhadas pela banda do Pixinguinha. A Carmen sabia escolher o melhor acompanhamento para ela. Isso faz com que esse conjunto ? com dois violões ou três, pandeiro, cavaquinho, um instrumento solista; o chamado regional ? acabe sendo muito útil nas estações de rádio, porque ele podia acompanhar justamente aquela onda do samba que estava se consagrando como música nacional.
Mas o choro começa a ser tocado de outra maneira. O choro era muito mais perto da polca e do maxixe até o surgimento do conjunto regional do Benedito Lacerda, que é o modelo que todos copiam. O conjunto regional é o acompanhamento ideal do samba batucado que se consagra e muda a maneira de tocar o choro. Até a era do rádio, o choro era tocado por orquestra, tocado por pequenos conjuntos. Tinha piano com flauta, piano com trompete. Havia variedade de instrumentação. A partir da era do rádio, há um afunilamento para o conjunto regional e acaba passando a ideia para as gerações seguintes, que choro era tocado só daquela maneira, só com aquela formação, quando na verdade era uma coisa muito mais diversificada.
Agência Brasil: Morreu recentemente Cristina Buarque, com quem você gravou disco e teve projeto de espetáculos.
Henrique Cazes: No início dos anos 1990, eu e Cristina tínhamos um ponto de encontro que era um bar chamado Bip Bip, em Copacabana, muito perto da casa da mãe dela. [Lá] foi surgindo a ideia de fazer um trabalho sobre Noel Rosa. E homenageando, então, a situação em que todos nos encontrávamos naquele momento, a gente escolheu o título de Sem tostão... a crise não é boato para um show que estreou em março de 1992. Depois de 7 anos com esse show, a gente fez A crise continua e gravamos dois discos.
Nesse espetáculo, éramos só eu e ela. Eu tocando, cantando e contando histórias, e ela cantando. A gente se divertia muito fazendo show. Ela tinha um humor muito peculiar. É uma perda incrível. Cristina foi um exemplo de interesse por repertórios que estavam esquecidos. Há uma geração toda que veio cantando nos espaços da Lapa ? como Pedro Miranda, Pedro Paulo Malta, Alfredo Del-Penho, Teresa Cristina e outros mais ? que pegaram o gosto da pesquisa por causa da Cristina. Ela era uma pesquisadora prática. Perguntava: “você conhece aquela música?” Eu respondia; “não conheço, não.” E ela: “vou te mandar”. Outro dia, encontrei na minha casa uma seleção que ela fez de coisas esquecidas do Cartola. Ela queria era que mais pessoas partilhassem daquela paixão dela pelo samba de repertório pouco rodado, né?
Sua morte é uma perda muito grande. Era uma pessoa que, toda vez que a gente sentava para conversar, eram horas de conversa, muita risada, falávamos muita bobagem. Tinha um humor muito ácido, muito crítico. Sua perda para mim foi uma pancada firme. É duro para o samba, é duro para o ambiente das rodas de samba. E o que a gente pode fazer? A gente só pode cantar o repertório dela.
*Apresentador do programa Roda de Samba, da Rádio Nacional.
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