A primeira cirurgia de transgenitalização pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em Juiz de Fora foi realizada em março deste ano, no Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora (HU-UFJF), e divulgado neste mês do Orgulho LGBTQIAPN+. A paciente, Mirella da Silva Ferreira, uma mulher trans de 31 anos, já está de alta e segue vida normal, com acompanhamento regular de equipe multiprofissional.

O hospital informou que o procedimento cirúrgico ocorreu de forma tranquila, com duração de quatro horas e pós-operatório imediato sem intercorrências. Mirella ficou internada por cerca de uma semana, sendo acompanhada nos ambulatórios de ginecologia e urologia nos primeiros meses de pós-operatório.

Segundo a UFJF, atualmente é o único serviço oficialmente habilitado para a prática no estado de Minas Gerais. A médica ginecologista Carolaine Bitencourt e o urologista José Murillo Netto são os cirurgiões responsáveis.

“Eu sou a primeira mulher trans de Juiz de Fora a realizar esse procedimento através do Sistema Único de Saúde. Diante de tanta alegria, confesso que a minha ficha ainda não caiu. Estou com uma sensação inexplicável por ter aberto esse portal tão importante e histórico para tantas pessoas da minha comunidade”, contou Mirella em um vídeo divulgado nas redes sociais.

 

Caminho até a cirurgia

Mirella iniciou a transição de gênero aos 23 anos e via a cirurgia de redesignação sexual como algo distante que demandava muito tempo para ser realizada via SUS.

“No município, ainda não havia a institucionalização de políticas de saúde pública para a população trans e, financeiramente, não estava ao meu alcance realizá-la na rede privada. Quando o HU começou a atender no Ambulatório de Diversidade de Gênero, fui às consultas em busca de acompanhamento na minha terapia hormonal junto à equipe da endocrinologia e, em uma delas, foi citada a possibilidade de a cirurgia ser realizada. Esse processo durou três anos até eu ser comunicada, em 2023, que seria uma das possíveis pessoas dentro dos critérios exigidos pelo Ministério da Saúde para a cirurgia. Com isso, comecei o acompanhamento pré-operatório”, conta.

Para chegar ao HU, Mirella precisou passar pelo fluxo normal do SUS, com acompanhamento psicológico, médico, fisioterápico e social, para que todos os requisitos legais, aspectos clínicos e sociais fossem contemplados.

Depois disso, ela foi orientada sobre a cirurgia em si, com rede de apoio para o pós-operatório, acesso ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), previsibilidade de complicações.

Normalmente o período de internação é de sete dias, sendo o pós-operatório inicial, com cuidados mais frequentes, previsto em torno de 90 dias, e total recuperação em 180 dias, explicou a ginecologista Carolaine. Após este período, pode ser semestral e anual; no caso de intercorrências, este tempo pode variar.

“A pessoa que deseja realizar o procedimento precisa ter esse entendimento. É uma cirurgia de mudança de função urinária, evacuatória, sensitiva e motora, visto que todos os órgãos pélvicos externos e internos são reestruturados. Por isso, o trabalho da equipe multiprofissional é imprescindível para o sucesso global da cirurgia e satisfação da paciente”, explicou Carolaine.

José Murillo, especializado em urologia pediátrica e reconstrutora, esclareceu que a cirurgia de transgenitalização, também chamada redesignação sexual, já é uma realidade em todo o mundo, embora em poucos centros brasileiros. Ele ressalta que algumas pessoas trans podem apresentar desconforto com características anatômicas e/ou fisiológicas de nascimento.

“Sendo assim, poder realizar a cirurgia de transgenitalização traz uma grande mudança em suas vidas. Esse impacto é único e individual. Participar desse marco histórico foi uma grande honra, tendo a possibilidade de melhorar a qualidade de vida das pessoas e realizando seus sonhos”, destacou.

Priscila Almeida Barbosa é fisioterapeuta pélvica do HU-UFJF e ressaltou a importância da reabilitação do assoalho pélvico e suas disfunções.

“O trabalho foi desenvolvido a partir de um plano de cuidados, que envolveu acolhimento e esclarecimentos pré-cirúrgicos e acompanhamento pós-cirúrgico, que ofereceu métodos terapêuticos para trabalhar e prevenir possíveis complicações e queixas, a exemplo de abertura de pontos, edema, fibroses, dor, retenção e/ou incontinência urinária, constipação, prolapsos e estreitamento vaginal, além de fornecer orientação sobre a redescoberta da sexualidade neste novo corpo”, explicou.

‘Cada pessoa trans tem suas próprias demandas’

Pelas redes sociais, Mirella contou como foi assim que terminou a cirurgia.

“Foram sete dias de internação, três dias somente deitada, bem monótonos. Porém, cercada de profissionais maravilhosos, enfermeiros e fisioterapeutas que me auxiliaram ainda num leito. No quarto dia pude me levantar e fazer minha primeira caminhada após a cirurgia. Desde então, todos os dias eu tinha um momento de caminhar, que era o auge do meu dia, pois já não aguentava mais ficar só deitada e passeava pelos corredores. Mas sempre acompanhada”, explicou.

Para Mirella, a cirurgia representou a obtenção de uma “liberdade inexplicável”.

“Antes, eu tinha muitas limitações, das mais simples, como usar um traje de banho, às mais complexas, como ter bloqueio em me relacionar sexualmente. Hoje essa sensação de poder colocar uma peça íntima ou até mesmo poder ir a um clube ou praia de uma forma leve me traz conforto e prazer, olho no espelho com muito mais sentido”.

Mirella ressalta que “cada pessoa trans tem suas próprias demandas em relação ao corpo. O principal ponto é ter autonomia para eleger quais cirurgias fazem sentido ou não para se viver de uma forma plena [não que uma intervenção cirúrgica seja necessária para a pessoa ser respeitada com a identidade com a qual se apresenta]. Contudo, estou muito realizada com o meu processo. O mais importante é isso: cada pessoa ter autonomia sobre seu corpo e acesso a esses procedimentos na saúde pública”, completa.

Atendimento multiprofissional

O HU-UFJF foi habilitado pelo Ministério da Saúde como Serviço de Atenção Integral à Saúde da População em Diversidade de Gênero em 2023. A partir daí, foi estruturada uma equipe multiprofissional, que conta com profissionais e residentes do HU, nas áreas de psicologia, serviço social, fisioterapia, endocrinologia, cirurgia plástica, ginecologia e urologia, além de apoio da enfermagem, das enfermarias cirúrgicas e do centro cirúrgico.

A UFJF explica que, ao chegar no HU, há um primeiro acolhimento e posterior acompanhamento multiprofissional com idade e duração mínimas, entre outros critérios estabelecidos nas normativas vigentes do Ministério da Saúde. O Projeto Terapêutico Singular (PTS) de cada pessoa é construído em harmonia com o seu desejo, interesse, possibilidades e limitações.

“O trabalho realizado pela equipe multi busca fomentar acolhimento humanizado, garantia de direitos e valorização das pluralidades, bem como criar uma ambiência de cuidado integral à saúde da população trans, enfrentando situações de vulnerabilidade subjetiva, social e programática, objetivando a promoção da qualidade de vida e a garantia da dignidade. Outra ação importante foi a realização de capacitações das diversas equipes do HU-UFJF, para garantir um atendimento ético e humanizado”, explicou a chefe da Unidade Multiprofissional, Priscilla Batista Noé.

Entre os procedimentos hospitalares/cirúrgicos oferecidos pelo Serviço de Atenção Integral à Saúde da População em Diversidade de Gênero estão:

  • Mastectomia (retirada de seios)
  • Histerectomia (retirada de útero)
  • Cirurgia de transgenitalização (construção de neovagina)

A Instituição ressalta que há expectativa de novos procedimentos, a exemplo de mamoplastia de aumento (implante mamário), ooforectomia (retirada de ovários) e tireoplastia (remoção do chamado “pomo-de-adão”), dentre outros.

Como é o fluxo de atendimento?

A porta de entrada são os dispositivos de Atenção Básica (como as Unidades Básicas de Saúde), que fazem a marcação na agenda de acolhimento do Ambulatório de Diversidade de Gênero no HU-UFJF.

Se for de área descoberta, ou seja, que não tenha UBS ou outro dispositivo de atenção básica próximos, é necessário procurar o PAM Marechal. Para residentes de outras cidades, a solicitação de marcação é através da secretaria de saúde do município da pessoa.

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SUS | transgenitalização

Divulgação - Mirella da Silva Ferreira

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